O direito expõe suas desigualdades das mais diversas formas, num contexto em que da produção normativa até a aplicação da norma existe uma orientação específica de interesses. Nesse sentido, o professor Roberto Aguiar leciona que “o mito da neutralidade do direito deve ser derrubado”1. Isso porque o direito é, essencialmente, um “sistema de relações que corresponde aos interesses da classe dominante e de sua garantia por meio de sua força organizada”2.
A seletividade penal
O Direito Penal, como parte das relações de poder e dominação, não é igual para todos, punindo de forma desigual. Alessandro Baratta expressa que na aplicação deste Direito “o status de criminoso é distribuído de modo desigual entre os indivíduos […] independente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à lei”3. No mesmo sentido, Howard Becker defende que “o grau em que um ato será tratado como desviante depende também de quem o comete e de quem se sente prejudicado por ele. Regras tendem a ser aplicadas mais à algumas pessoas que a outras”4.
A segregação social é uma dura realidade nas mais diversas sociedades contemporâneas, onde são segregados “os párias, os deserdados, os parasitas, os lúmpens, os perigosos, os réprobos, os inimigos, os desamparados moral e socialmente, em uma palavra, os pobres”5. Para Foucault, tanto a noção de crime quanto a noção de criminoso se relacionam aos “jogos de força que, segundo a classe a que pertencem os indivíduos, os conduzirão ao poder ou à prisão”6.
O cárcere, nesse contexto, representa “o momento culminante de um processo de seleção que começa ainda antes da intervenção do sistema penal, com a discriminação social e escolar, com a intervenção dos institutos de controle do desvio de menores, da assistência social etc.”7. Isso se torna claro nas estatísticas das prisões brasileiras, em que 63,6% dos encarcerados são negros, enquanto a sociedade brasileira tem 52,2% de pessoas negras89.
A realidade do cárcere no Brasil
De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias de dezembro de 2019 (atualizado em 09/04/2020), realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional, o cárcere comporta 755.274 pessoas no Brasil. Enquanto isso o número de vagas é de 442.349, ocasionando um déficit de 312.925 vagas10. Conforme o World Prison Brief (WPB), realizado pelo Instituto de Pesquisa sobre Políticas de Crime e Justiça da Universidade Birkbeck de Londres, a população carcerária brasileira é a terceira maior do mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos e da China11.
Apesar da Constituição Federal colocar a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República e da Lei de Execução Penal especificar como deve acontecer o exercício dessa dignidade no cárcere, as pessoas privadas de liberdade prosseguem vivendo em situações absolutamente precárias. O próprio Supremo Tribunal Federal, em 2015, reconheceu em julgamento na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347 que o sistema prisional brasileiro contempla um “estado de coisas inconstitucional”12.
A possibilidade de atenção de saúde às pessoas privadas de liberdade no Brasil também é extremamente precária. A Nota Técnica nº 23/2020 do Departamento Penitenciário Nacional expõe que existem no país 1.412 estabelecimentos penais. Destes, apenas 856 têm consultório médico e 756 têm médicos nos consultórios. Também revela que existem 369 estabelecimentos penais sem qualquer forma de atendimento de saúde13.
Nesse contexto, o Departamento Penitenciário Nacional revela um estarrecedor número de 8.638 presos com tuberculose, 7.742 com HIV e 5.949 com sífilis, além das diversas outras doenças14. De acordo com a médica epidemiologista e pesquisadora da Fiocruz Alexandra Sánchez, em entrevista concedida ao Globo, mais de 80% dos mortos nas prisões perderam suas vidas por conta de doenças – em sua maioria tratáveis15.
Existem também os problemas de higiene, tanto no espaço físico das prisões quanto na higiene pessoal dos privados de liberdade, e as preocupantes questões de alimentação – sendo que é comum nos estabelecimentos penais a disponibilização de refeições que não acolhem as necessidades nutricionais do ser humano. Esses fatores, aliados à superlotação, colocam a população carcerária em um grande risco de contágio e uma probabilidade considerável de um elevado índice de letalidade. Nesse sentido, Rafael de Assis leciona:
A superlotação das celas, sua precariedade e insalubridade tornam as prisões um ambiente propício à proliferação de epidemias e ao contágio de doenças. Todos esses fatores estruturais, como também a má-alimentação dos presos, seu sedentarismo, o uso de drogas, a falta de higiene e toda a lugubridade da prisão fazem com que o preso que ali adentrou numa condição sadia de lá não saia sem ser acometido de uma doença ou com sua resistência física e saúde fragilizadas.16
Nesse cenário, a situação do covid-19 no sistema prisional brasileiro já começa a preocupar. Em relação à população total do Brasil, em 04/05/2020 existiam 101.147 casos confirmados da doença (0,04% da população brasileira) e 7.025 óbitos17. No cárcere, na mesma data, foram 229 confirmados (0,03% da população privada de liberdade) e 10 óbitos18. Já no dia 20/06/2020 existiam 1.070.139 casos confirmados da doença (0,51% da população brasileira) e 50.058 óbitos no Brasil19. No cárcere, nesta data, foram 3.137 confirmados (0,42% da população privada de liberdade) e 55 óbitos20.
Cabe lembrar que a subnotificação é muito maior nas prisões que fora delas, tendo em vista a quantidade ínfima de exames realizados – apenas 10.000 testes até o momento nos estabelecimentos penais. Evidencia-se assim que a doença tem um crescimento muito mais rápido entre as pessoas encarceradas do que no restante da população. Com isso, pela condição absolutamente insalubre dos estabelecimentos penais, as previsões dão conta de uma aceleração ainda maior na contaminação intracárcere.
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Problemas que levam à crise prisional contemporânea não serão resolvidos com medidas tomadas no combate ao novo coronavírus
Medidas para evitar o contágio
São diversas as medidas que já foram tomadas no sentido de combater a disseminação do novo coronavírus no cárcere brasileiro. Entretanto, a efetividade dessas medidas até o presente momento é preocupantemente baixa. Um exemplo é o fato de o Departamento Penitenciário Nacional solicitar aos gestores regionais uma lista de insumos de saúde necessários para cada local. Entretanto, cabe destacar que tais insumos estão em falta até mesmo em hospitais – o que torna questionável se essa medida realmente terá algum efeito prático.
Outra medida questionável é o direcionamento ao isolamento de privados de liberdade que façam parte do grupo de risco ou ao isolamento dos já infectados e suspeitos. Com a superlotação das prisões, quaisquer formas de isolamento possíveis seriam precárias e dificilmente cumpririam o papel de proteger a vida das pessoas ali vulneráveis ao vírus. Coloca-se em pauta também a higienização mais severa das celas e dos espaços comuns, o que esbarra também na superlotação – que invariavelmente impede a manutenção da salubridade.
Foram suspensas as visitas na maior parte dos estabelecimentos prisionais, o que apesar de relativizar direitos, divide opiniões acerca de sua necessidade temporária para evitar o contágio comunitário. Também chegou a ser suspenso o atendimento de advogados e defensores públicos em 14 Estados, além do Distrito Federal e em todas as prisões federais. Essa medida é extremamente prejudicial à defesa das pessoas privadas de liberdade. Isso porque o advogado e o defensor público recebem, usualmente, denúncias que versam sobre falta de água, alimento impróprio, tortura, etc. É o advogado ou o defensor público que pode salvaguardar os direitos de quem está privado de sua liberdade.
Entre as diversas medidas assumidas até o momento, umas das mais importantes foi a Recomendação nº 62 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que, entre outras questões, colocou a necessidade da revisão das prisões provisórias, assim como a saída antecipada dos regimes fechado e semiaberto de presos que, ainda que não estejam no grupo de risco, estão em estabelecimentos com ocupação superior à capacidade. A Recomendação também sugere a prisão domiciliar para todos em regime aberto e semiaberto. Apesar disso, o supervisor do departamento carcerário do CNJ, Mário Guerreiro, disse que o número de presos que deixam o sistema prisional “não é significativamente maior do que normalmente já sairia no fluxo natural de execução penal”21.
Resta evidente que muitos magistrados não estão atendendo o disposto na Recomendação mencionada. Na Grande São Paulo, a magistrada Vanessa Christie Enande, da comarca de Guararema, negou o pedido de prisão domiciliar de preso hipertenso alegando que “aquele que está preso por violar norma penal (…) não teria muita dificuldade, ou freios internos para violar regras sanitárias”22. O desembargador Alberto Anderson Filho, da 7ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, também negou pedido de prisão domiciliar, alegando que somente os astronautas que se encontram na estação espacial internacional “por ora não estão sujeitos à contaminação pelo famigerado coronavírus”23.
Uma providência fundamental que está em vias de se realizar é a aprovação de uma lei que especifique os termos de concretização da Recomendação nº 62 do CNJ. De autoria da deputada Talíria Petrone, o Projeto de Lei 978/2020 dispõe acerca das medidas a serem tomadas para salvaguardar a saúde da população carcerária, além dos agentes penitenciários e demais servidores atuantes nas prisões, respeitando a recomendação do CNJ e, ainda, ampliando a discussão. Quarenta e quatro entidades assinaram nota em apoio ao projeto de lei, dentre as quais estão a Associação Juízes para a Democracia e comissões de direitos humanos de diversas secionais da OAB24.
Afinal, quem está em risco nas prisões?
Demonstrou-se que o encarceramento em massa se dá de forma claramente seletiva no Brasil. A proporção entre pessoas pobres, negras ou com baixa instrução dentro e fora do cárcere não deixa dúvidas do exercício sistemático da seletividade penal. Por conta disso, a letalidade de qualquer doença em uma prisão determina por si só uma letalidade seletiva, independente de sua origem. Em um ambiente onde pessoas pobres e negras são maioria absoluta, as mortes – notificadas ou não – estarão nesse grupo.
É necessário salientar que usualmente essas populações já vivem em condições precárias onde quer que seja. Mas no cárcere a insalubridade, a subnutrição, o tratamento vil e as diversas doenças que rondam os privados de liberdade serão ainda mais impositivos em tempos pandêmicos. A morte ronda o cárcere há tempos. Mas a covid-19 pode espalhar ainda mais, numa velocidade assombrosa, os terrores já existentes nas prisões – como já vem acontecendo.
Os problemas que levam à crise prisional contemporânea não serão resolvidos com as medidas que vem sendo tomadas no combate ao novo coronavírus. Talvez essas medidas nem mesmo consigam ser suficientemente eficazes nesse combate especificamente. O problema central é anterior e muito mais profundo. A saída a longo prazo para evitar que seja necessário pautar essa questão novamente é a construção de um novo projeto de sociedade, efetivamente humana, justa e libertadora de forma universal, onde a seletividade caia por terra. A saída a curto prazo poderia ser a compreensão de que o modelo social vigente se mostrou insuficiente, direcionando-nos imediatamente à valorização da vida e da dignidade humanas. Resta a questão: podemos esperar a concretização de alguma dessas saídas?
*Pedro Camilo de Fernandes é advogado da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares
[1] AGUIAR, Roberto Armando Ramos de. Direito, Poder e Opressão. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1990. p. 67.
[2] PACHUKANIS, Evgeni. A teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos (1921-1929). Coordenação de Marcus Orione. Tradução de Lucas Simone. São Paulo: Sundermann, 2017. p. 108.
[3] BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3ed. Rio de Janeiro: Revan; Instituto Carioca de Criminologia, 2002. p. 162.
[4] BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução de Maria Luiza X. de Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 25.
[5] MARTINI, Márcia. A seletividade punitiva como instrumento de controle das classes perigosas. MPMG Jurídico, Minas Gerais, ano III, nº11, p.45-47, out.-dez. 2007. p. 45.
[6] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Tradução de Raquel Ramalhete. 28ed. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 240.
[7] BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3ed. Rio de Janeiro: Revan; Instituto Carioca de Criminologia, 2002. p. 167.
[8] BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) 2017. Brasília: DEPEN, 2019. p. 32.
[9] BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) 2017. Brasília: DEPEN, 2019. p. 34.
[10] BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) 2019. Brasília: DEPEN, 2020.
[11] BIRKBECK, University of London. Institute for Crime & Justice Policy Research. World Prison Brief. Prison Population Total, 2020.
[12] STF. Supremo Tribunal Federal. STF determina realização de audiências de custódia e descontingenciamento do Fundo Penitenciário. Setembro de 2015.
[13] BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Nota Técnica nº 23/2020.
[14] Idem.
[15] GLOBO. Nas prisões, doenças matam mais que violência. Youtube, 24 set. 2019.
[16] ASSIS, Rafael Damaceno. A Realidade Atual do Sistema Penitenciário Brasileiro. Revista CEJ, Brasília, Ano XI, n. 39, p. 74-78, out./dez. 2007. p. 75.
[17] Informações obtidas no site do governo federal criada especificamente para inteirar a população acerca da covid-19: https://covid.saude.gov.br.
[18] BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Detecções do coronavírus no sistema prisional brasileiro. Atualização constante.
[19] Informações do Consórcio da Imprensa (Folha, O Estado de S. Paulo, Extra, O Globo, G1 e UOL): https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/06/20/brasil-passa-de-50-mil-mortes-por-coronavirus-mostra-consorcio-de-veiculos-de-imprensa-sao-964-em-24-horas.ghtml.
[20] BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Detecções do coronavírus no sistema prisional brasileiro. Atualização constante.
[21] DOLCE, Julia. O que pensam os juízes que estão soltando presos em meio à pandemia. Exame, 10 abr. 2020.
[22] MARQUES, José. Juíza supõe que preso descumprirá quarentena do coronavírus e nega pedido de liberdade. Folha de São Paulo, 2 abr. 2020.
[23] ANGELO, Tiago. Domiciliar é negada porque “só astronautas estão livres do coronavírus”. CONJUR, 1 abr. 2020.
[24] MIGALHAS. Entidades assinam nota de apoio a PL que propõe redução da população prisional. Migalhas, 20 abr. 2020.
Referências
AGUIAR, Roberto Armando Ramos de. Direito, Poder e Opressão. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1990. 184p.
ANGELO, Tiago. Domiciliar é negada porque “só astronautas estão livres do coronavírus”. CONJUR, 1 abr. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-01/domiciliar-negada-porque-astronautas-livres-coronavirus . Acesso em: 19 abr. 2020.
ASSIS, Rafael Damaceno. A Realidade Atual do Sistema Penitenciário Brasileiro. Revista CEJ, Brasília, Ano XI, n. 39, p. 74-78, out./dez. 2007. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/issue/view/64. Acesso em: 18 abr. 2020.
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3ed. Rio de Janeiro: Revan; Instituto Carioca de Criminologia, 2002. 256p.
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