O Sistema Único de Saúde (SUS) vive momento de pujança como política pública norteadora do enfrentamento à pandemia da covid-19. Mas apesar dessa robustez, toda gestora reconhece os desafios que temos para fazer o SUS funcionar nos territórios em que o gerimos. Uma das causas da dificuldade vem do seu subfinanciamento, como também da dificuldade que existe na legislação em se gastar os recursos em função dos carimbos que eles possuem.
Usar bem o dinheiro público do SUS é desafiador. Grande parte dos recursos que os municípios recebem para financiar o serviços de saúde que funcionam no território municipal vem do Governo Federal, embora a cada ano que passa o percentual de comprometimento da receita própria dos municípios com o SUS venha aumentando em contraponto com o financiamento federal. Todavia, para usar esses recursos, há inúmeras regras, condições que engessam e dificultam o seu uso.
Primeiramente há a distinção das verbas de custeio com as verbas de investimento. Custear significa pagar despesas com a manutenção dos serviços de saúde, como os vencimentos do trabalhadores que nele atuam, pagar as despesas com água, luz do imóvel em que ele funciona, combustível dos automóveis que levam os usuários para consultas. Mas aquela Unidade Básica de Saúde (UBS) está precisando de mobiliário novo, já que os que a guarnecem estão deteriorados pelo tempo. Posso usar esse recurso que o Ministério da Saúde mandou pra isso? Não. Mas está sobrando neste momento na conta e no orçamento, não posso mesmo? Não. Pra comprar o mobiliário novo, o município deveria usar recursos de investimento advindos de transferências do Governo Federal ou do Estadual, ou decorrentes de recursos próprios transferidos da Prefeitura para o Fundo Municipal de Saúde.
O inverso, mais difícil, também pode acontecer. O município pode receber recursos para uso em investimento, como construção de uma UBS, por exemplo, e precisar de recursos para manter a estrutura física de uma outra unidade de saúde já em funcionamento. Pode usar parte desse recurso de investimento para pintar essa UBS já existente? Não.
Há também os carimbos do uso quanto ao recurso decorrente da complexidade do serviço a ser custeado. O recurso que o município recebe para usar na Atenção Básica não pode ser usado para uso na Média Complexidade, e o inverso também é proibido. Precisa reformar o Pronto Atendimento da sua cidade, mas só tem recurso na conta bancária da Atenção Básica, posso usar? Não.
Neste ano, o Fundo Municipal de Conde recebeu e ainda receberá recursos decorrentes de emendas parlamentares impositivas advindas de deputados federais. Elas tratam de recursos de custeio e de investimento. As de custeio referem-se à Atenção Básica e também ao enfrentamento à covid-19. Opa, custeio, posso usar esse dinheiro novo para pagar gratificação para os profissionais que atuam na linha de frente da covid-19 em Conde? Não. Mas não é de custeio? Sim, é, mas por ser uma verba de incremento temporário e os gastos com pessoal demandarem, em tese, recursos permanentes, não pode ser usada para este fim, conforme prescreve a portaria que as regula.
Difícil, não é? Chega a dar nó na cabeça das gestoras de Saúde!
Funciona, usando a analogia da vida privada, como se uma pessoa tivesse várias contas bancárias para cada despesa de sua vida: uma para gastos de alimentação, outra para os gastos de transporte, outra para gastos de saúde, outra para gastos de lazer, outra para gastos de vestimenta. Caso, no momento de fazer a feira da semana, faltasse saldo na conta da alimentação, a pessoa provavelmente buscaria usar recursos de outra conta para pagamento, o que por si só causaria uma dificuldade neste momento. Mas, em se tratando de recursos do SUS, essa complementação de saldos com uso de dinheiros de outra conta não seria possível em função desses carimbos que elas possuem, essas condições prévias de uso.
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Cada dinheiro público recebido do Governo Federal para o SUS já vem como inúmeros carimbos que impossibilitam o uso livre pelos municípios
No que se refere aos recursos de investimento advindos dessas emendas parlamentares, seu uso já vem previamente estabelecido e registrado no Sistema de Gerenciamento de Objetos e Propostas do Fundo Nacional de Saúde, por meio do qual são indicados, com detalhes, no que o recurso será usado antes de recebê-lo em conta bancária. Se for recurso de investimento para mobiliário e equipamentos, por exemplo, o valor a ser recebido deve ser previamente vinculado a um item de um ambiente dentro da unidade de saúde beneficiada. É preciso, previamente ao recebimento do recurso financeiro em conta, registrar que a mesa e a cadeira serão alocadas na recepção da UBS de Gurugi.
Não haveria problemas nessa vinculação burocrática prévia, se ela não fosse apenas o planejamento adiantado e rígido de um processo de aquisição que ainda será iniciado, e que estará submetido ao rigor da lei de licitações e suas normas correlatas. Ou seja, chegando os recursos na conta, como dinheiro novo que é, imprevisível de ser concebido quando a lei orçamentária foi elaborada, terá que ser alocado nas ações programáticas dela para que depois seja iniciado processo de aquisição de bens móveis. No decorrer desse processo de aquisição, muitos eventos que o atrasem podem acontecer, como a licitação ser deserta, haver impugnação acolhida pela Comissão de Licitação, dificuldade em se conseguir as cotações de preços necessárias, e no decurso desse tempo, é possível que novas demandas mais importantes surjam pra a política municipal de saúde, sem que seja possível à gestora mudar a destinação deste uso, de forma usual.
Cada dinheiro público recebido do Governo Federal para os serviços do SUS já vem como inúmeros carimbos, que impossibilitam o seu uso livre pelos municípios. Esses carimbos dificultam em muito a vida das gestoras, porque condicionam a sua utilização e, em certa medida, tolhem a autonomia dos municípios em atender às demandas de seu território de acordo com o planejamento local. Em alguma medida, os municípios tornam-se filiais da matriz Governo Federal, submetendo-se às suas regras, recebendo dinheiros com inúmeras amarras para atender às especificidades do território que governam.
Se é intuito da sociedade brasileira que o SUS saia fortalecido em razão da sua importância no enfrentamento da covid-19, é preciso que as regras para uso dos dinheiros público advindos do Governo Federal para seu financiamento sejam repensadas, fortalecendo a autonomia das gestoras municipais em decidir sobre sua utilização e desburocratizando-as.
*Renata Martins Domingos é secretária de Saúde da Prefeitura de Conde, na Paraíba.