Sem roupas e na escuridão, um prisioneiro teve suas mãos algemadas em argolas no teto da cela e foi obrigado a permanecer assim por três dias. Seus pés podiam encostar-se ao piso, mas lhe era impossível sair daquela posição que o impedia de dormir. Durante todo o período, os oficiais não lhe permitiram ir ao banheiro, lhe deram apenas um copo de leite com chocolate e uma porção racionada de água à noite; o resto do copo, com o líquido gelado, eles jogavam em seu corpo.
Reprodução/ Human Rights Watch
Em outra cela desse centro de detenção, um prisioneiro era interrogado pelos oficiais com diferentes métodos de tortura, que incluíam asfixia simulada com água (“waterboarding”), além de outras práticas menos conhecidas. Depois de ter sido afogado em um tanque de água, o homem teve de permanecer por uma hora em uma pequena caixa fechada. A caixa possuía pequenos buracos pelos quais os oficiais inseriam materiais pontiagudos e cortantes em seu corpo (foto à esquerda).
Esses são os relatos de Khalid al Sharif e Mohammed al Shoroeiya sobre suas experiências em prisões afegãs comandadas por agentes dos Estados Unidos durante o período de 2003 a 2005. Suas histórias, bem como a de outros 12 prisioneiros políticos, constam em um relatório da Human Rights Watch, divulgado nesta quinta-feira (06/09), sobre a colaboração do governo norte-americano com o regime de Muamar Kadafi, na Líbia.
O documento revela que a administração de George W. Bush (2001-2009) torturou opositores do presidente líbio em centros no Afeganistão e, depois, os enviou para o país, aonde os prisioneiros também sofreram abusos. “Os EUA não apenas entregaram para Kadafi seus inimigos em uma bandeja de prata, como parece que a CIA torturou muitos deles antes”, afirmou Laura Pitter, assessora de terrorismo da HRW.
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O relatório “Entregues às mãos do inimigo: os abusos e detenções comandados pelos EUA para a Líbia de Kadafi” se baseia em entrevistas conduzidas com 14 antigos prisioneiros, muitos pertencentes ao LIFG (Grupo Líbio de Luta Islâmica na sigla em inglês), e em documentos secretos da inteligência norte-americana, líbia e britânica, abandonados pela administração de Kadafi durante a guerra civil no ano passado.
Tanto os testemunhos quanto os documentos indicam que membros de grupos opositores ao presidente líbio foram presos secretamente por forças norte-americanas em territórios externos à Líbia, com o apoio de governos europeus, africanos, asiáticos e do Oriente Médio. Sharif e Shoroeiya, por exemplo, foram detidos em Peshawar, no Paquistão, em abril de 2003, por oficiais dos EUA e autoridades locais.
Os antigos prisioneiros, muitos dos quais fazem parte do novo governo líbio, relataram que eram algemados de diferentes formas nas paredes das celas, privados de tomar banho por semanas, impedidos de dormir durante dias e que ficavam meses sem sair de suas pequenas celas. A prisão não tinha luz e os oficiais deixavam, ininterruptamente, uma música ocidental em um volume alto.
“Por conta da falta de dormir por três dias, eu fiquei histérico. Eu achei que estava ficando louco. Tudo ao meu redor estava girando e estava totalmente escuro”, lembra Sharif. “Eu gritava 'Eu quero morrer, por que vocês não me matam'?”, conta Majid al Maghrebi, outro prisioneiro submetido a tortura. Os líbios entrevistados lembram de diversas situações de humilhação, onde urinavam e defecavam em seu próprio corpo, gritavam, mas não eram escutados.
Reprodução/ Human Rights Watch
Três diferentes posições que os prisioneiros eram algemados por dias ininterruptos
A prática de prender e torturar secretamente opositores de Kadafi, que não enfrentavam nenhum tipo de acusação formal, integra a política de combate ao terrorismo elaborada pela administração Bush depois do 11/9.
Segundo a HRW, as dezenas de violações de direitos humanos não foram devidamente investigadas pelo governo dos EUA. Apesar de diversas provas e indícios de práticas de tortura realizadas pela CIA em prisões ao redor do mundo, apenas alguns oficiais de baixo escalão foram punidos.
O documento foi divulgado dias depois de a Promotoria dos EUA ter encerrado as investigações sobre a morte de dois presos mortos por oficiais da CIA em práticas de tortura no Afeganistão e no Iraque sem nenhuma acusação. Para Pitter, este caso “envia uma mensagem de que abusos como os que sofreram os prisioneiros líbios vão continuar a ser tolerados”.
Outro sinal de que o governo norte-americano não quer esclarecer as violações cometidas em sua guerra contra o terror veio do próprio presidente. Quando Barack Obama assumiu a presidência em 2009, organizações de direitos humanos e ativistas pediram o estabelecimento de uma comissão da verdade para investigar os crimes. O democrata, no entanto, se recusou, afirmando que era necessário olhar para o futuro e não para o passado.
Apesar disso, “o governo dos EUA continua a pedir – e com razão – que países como Líbia. Síria e Bahrein responsabilizem seus oficiais por violações dos direitos humanos, incluindo a tortura”, conclui Pitter.
Nesta quinta-feira (06/09), autoridades norte-americanas e afegãs anunciaram que os EUA vão manter seu controle sob centros de detenção no país, mesmo depois da retirada de suas tropas.
Para acessar ao relatório, clique aqui.