Agrônomo, professor e escritor, o brasileiro José Graziano da Silva deixa o comando da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) na próxima quarta-feira (31/07), depois de sete anos no cargo. Ex-ministro extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, entre 2003 e 2004, ele foi um dos principais articuladores do Programa Fome Zero, responsável por tirar o Brasil do Mapa da Fome da ONU pela primeira vez.
Em entrevista à DW Brasil, o diretor-geral da FAO disse que ficou “chocado” com a afirmação do presidente Jair Bolsonaro de que não existe fome no Brasil, um problema que afeta cerca de cinco milhões de pessoas no país. “O presidente está mal informado.”
“O Brasil hoje tem negligenciado a fome e as políticas sociais”, acrescentou Graziano, afirmando que o problema está diretamente relacionado ao desemprego e à precarização do trabalho. “É preciso colocar o tema da fome no centro das políticas, além das questões relacionadas, como desemprego, a pobreza extrema e as desigualdades”, observou.
Ao comentar a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) pelo atual governo, Graziano defendeu que não se pode combater a fome com ideologia: “Você não pode perguntar para quem está passando fome se ele ou ela é de esquerda ou de direita.”
DW: O presidente Jair Bolsonaro disse na semana passada que “falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira”. Após polêmica, ele amenizou sua fala e disse que “alguns passam fome no Brasil”. Como o senhor avalia as afirmações do presidente?
José Graziano da Silva: Olha, eu acompanhei o debate à distância. Infelizmente, eu não tenho muito tempo para acompanhar essa discussão na mídia brasileira. Eu fiquei chocado, porque o presidente está mal informado. E eu acho que a própria maneira como ele fez a retratação demonstrou um certo desleixo com o tema. A fome é um tema muito sério no Brasil, sempre foi.
Na história brasileira, nós temos Josué de Castro [médico, escritor e ativista referência no combate à fome no Brasil]. Temos toda uma historiografia que coloca a fome como um dos temas centrais do país e essa tremenda contradição que o país sempre viveu. Josué de Castro dizia que na região mais rica do nordeste – a Zona da Mata, produtora de açúcar, que era a grande riqueza do momento – as pessoas passavam fome. Então, essa contradição que sempre foi inerente à história brasileira merece uma atenção séria dos governantes.
O índice de pessoas em situação de insegurança alimentar no Brasil passou de 10,6% no início dos anos 2000, o que representaria 19 milhões de pessoas, para 2,5%, entre 2008 e 2010. A FAO atribui essa redução a políticas sociais contra a extrema pobreza e ao combate à seca no Nordeste. Como o senhor descreve o atual cenário no país?
O Brasil erradicou a fome. Em 2014, a FAO tirou o Brasil do Mapa da Fome pela primeira vez, porque o nível da prevalência da subnutrição caiu abaixo de 5%. E esse é um número meio cabalístico e meio mágico que usamos, porque abaixo dos 5% nós não temos precisão da medida. Esses 5% seriam hoje no Brasil por volta de 4 ou 5 milhões de pessoas. A gente evita divulgar esse número devido à imprecisão dele, que é em certo sentido residual. Se 5% passam fome, quer dizer que 95% não passam fome. Mas 5% é muita gente. E o único número que dá para aceitar é zero.
Por isso que a gente fala “Fome Zero”: um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU é erradicar a fome. Não é reduzir à metade, nem a 5%, é erradicar. E, para isso, precisamos de políticas ativas. Eu diria que o Brasil hoje tem negligenciado esse lado da fome e também das políticas sociais. O principal problema ligado à fome no Brasil é o desemprego e a falta de proteção social. Virar desempregado no Brasil é sinônimo de passar fome, porque não se tem acesso a um sistema de proteção social, como existe nos países europeus.
DW/R. Belincanta
José Graziano da Silva, diretor-geral da FAO
O último relatório global da FAO descreve que o combate à fome no Brasil sofre as consequências da crise econômica desde 2012.
O maior problema que nós temos visto é o crescimento do desemprego. Os indicadores não são da FAO, mas do IBGE. Segundo a estimativa de 2019, nós chegamos a um total de 28,3 milhões de pessoas com alguma forma de precariedade no trabalho. São 13 milhões de desempregados, 8 milhões de pessoas que gostariam de trabalhar, mas não têm emprego, e quase 7 milhões de pessoas ocupadas, mas que não trabalham o número de horas que gostariam. É um número altíssimo.
Se você colocar o gráfico da fome e o gráfico desses três grupos juntos, você verá que um aumento mínimo da fome coincide com um aumento mínimo do desemprego ou do número de pessoas que não trabalham o quanto gostariam. Um país que não cresce ou cresce pouco não consegue absorver a população que todo ano tenta entrar no mercado de trabalho. Todas as formas precárias de trabalho são formas que apontam para um aumento da subnutrição.
O Programa Fome Zero, lançado em 2003, é apresentado pela FAO como uma referência para outros países do mundo. Como o senhor vê o futuro do programa no Brasil?
Nós passamos a ter entre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU a erradicação completa da fome e de todas as formas de má nutrição. O Fome Zero foi um espelho, um modelo desse programa. Primeiro, porque foi um dos primeiros programas de combate à fome a combinar o aumento da produção com o aumento do acesso.
Antes, sempre se pensava que o problema da fome era um problema de falta de alimentos. Hoje, nós produzimos mais do que o suficiente no mundo para alimentar todas as pessoas e jogamos fora um terço do que produzimos. Então, não é um problema de falta de produção, é um problema de falta de acesso. As pessoas não têm dinheiro para comprar os alimentos que precisam. O Fome Zero combinou um estímulo à produção agrícola, à agricultura familiar, principalmente, com a melhoria do acesso através de programas de transferência de renda.
Além disso, instituiu uma série de outros programas também relacionados à alimentação, como restaurantes públicos, merenda escolar com compras locais e de agricultura familiar, hortas comunitárias e assim sucessivamente. Foram programas que combinaram uma maior disponibilidade de produtos com a melhoria do acesso a esses produtos.
Essa foi a receita brasileira que hoje é copiada. Nós temos países aplicando o Fome Zero e chamando seu programa Fome Zero em várias partes do mundo, como na Ásia, África e América Latina.
Bolsonaro extinguiu as atribuições do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) no primeiro dia no Planalto. Qual é o peso político dessa decisão e quais medidas precisam ser tomadas pelo atual governo para que o país não volte ao Mapa da Fome?
Eu sempre digo que o combate à fome não pode ter ideologia. Você não pode perguntar para quem está passando fome se ele ou ela é de esquerda ou de direita. Tem que ser um programa de Estado, e não um programa de governo. Tem que ser medidas que assegurem o direito à alimentação saudável, que é um direito constitucional no Brasil. Isso tem que ser um programa de longo prazo. Entra governo, sai governo, tem que manter a merenda escolar, tem que manter o apoio à agricultura familiar, tem que manter os programas de transferência de renda aos mais pobres, etc. Então, não cabe ideologia nessas coisas. E, se tem, não deveria.
Eu acho que o Brasil está patinando. É preciso colocar o tema da fome no centro das políticas e as questões relacionadas, como emprego, a erradicação da pobreza extrema, a desigualdade, que é um dos elementos que afeta muito a fome. Esses são elementos que precisavam ser enfrentados com uma agenda positiva, uma agenda que ocupasse o centro das atenções do programa de governo.
Eu queria lembrar que não é um governo que acaba com a fome. Acabar com a fome é a decisão de uma sociedade. Nos Estados Unidos, por exemplo, no pós-guerra, Roosevelt tomou uma decisão de Estado e conclamou a sociedade civil e o setor privado a acabar com a fome. Não é um programa só de governo. É preciso abrir canais de participação social. Essas políticas sociais, se não forem participativas, não resultam em cidadania, viram um mero assistencialismo. Viram como era antes: distribuir cesta básica e trocar por voto. Não é isso que se quer. O que se quer é uma população bem alimentada. E, para isso, tem que ter participação.
O último relatório da FAO mostra que 820 milhões de pessoas passavam fome no mundo em 2018, terceiro ano consecutivo de aumento. Qual é a sua perspectiva sobre o futuro do combate à fome no mundo?
Infelizmente, eu acho que está dificil neste momento ser otimista sobre a capacidade de reverter rapidamente esse crescimento da fome. O que nós vimos foi explodir outras formas de má nutrição, em particular anemia entre as mulheres e a obesidade entre os homens adultos e também entre mulheres. A obesidade hoje afeta mais gente no mundo do que a fome: 830 milhões de pessoas. Nos países desenvolvidos e em desenvolvimento, ricos e pobres, a obesidade está completamente fora de controle.
Nós temos um cardápio de políticas para combater a fome, e o Fome Zero é um exemplo. Para a obesidade, ainda estamos discutindo as melhores políticas. Sabemos que uma das causas principais da obesidade é o aumento do consumo de produtos ultraprocessados. Está começando a se formar um cardápio da “obesidade zero”, que eu espero que venha a se traduzir num programa similar ao Fome Zero para combater a obesidade, mas ainda distante de haver um consenso de como fazer isso. Por isso, eu vejo com grande preocupação o crescimento da obesidade e outras formas de má nutrição.
O senhor irá encerrar seu mandato em 31 de julho. Quais foram os principais desafios e conquistas à frente da FAO?
Eu acho que o principal desafio que eu enfrentei foi trazer de volta a FAO aos grandes temas do cenário internacional. Hoje, a FAO está dedicada ao combate à fome, à produção de dietas saudáveis, a enfrentar as questões relativas à mudança climática. Ou seja, nós estamos com uma agenda da atualidade.
Antes, a FAO cuidava da produção agrícola. Hoje, nós cuidamos também do consumidor, da população urbana. Nós temos uma grande proposta para promover dietas saudáveis junto à Organização Mundial da Saúde e o Unicef.
Eu acho que esse foi o grande legado que eu deixo, de fazer uma FAO mais presente no cenário internacional e mais efetiva também. Nós conseguimos descentralizar a organização e estar mais perto dos países que precisam da FAO. Eu costumo dizer que a FAO virou uma organização global, mas com os pés no chão. Eu acho que isso é o resumo do meu legado.