Toda tensão internacional é motivada por razões imediatas e por uma história que atravessa décadas, às vezes séculos. Não é diferente no caso da guerra entre Ucrânia e Rússia. Podemos nos ater aos fatos imediatos. No discurso atual, é evidente como Joe Biden, o presidente dos Estados Unidos em última instância responsável pela questionável decisão de promover a entrada da Ucrânia na Otan (ou Nato, sigla em inglês para Organização do Tratado do Atlântico Norte), se esconde por trás de entes como a própria Ucrânia, a Otan, a ONU e a União Europeia, enquanto o nome do presidente russo Vladimir Putin é repetido mais vezes do que o nome da própria Rússia em todas as reportagens e notícias sobre a guerra. Mas uma leitura tão imediatista não seria uma armadilha que facilita a busca de mocinhos e vilões e impede que se desarme, literalmente, os conflitos (militar e de ideias)?
Como sair dessa armadilha? Como pensar essa guerra fora do contexto atual? Talvez o melhor caminho seja recuar no tempo e buscar fontes que, aparentemente apenas, não estão diretamente ligadas aos fatos de 2021 e 2022.
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Os episódios recentes provocaram a memória de muita gente, e a minha se lembrou de um romance inusitado, que li nos anos 1980, provavelmente entre 1987 e 1988, intitulado A Terceira Guerra Mundial – Agosto de 1985, lançado em inglês em 1978 e escrito por militares da Otan. Voltar a esse romance permite pensar numa perspectiva em que é possível vislumbrar uma estratégia de longo prazo e verificar o que vem ocorrendo desde a década de 1970.
Nessa perspectiva, a notícia é a seguinte: a Otan vem sendo vitoriosa no longo prazo, e praticamente tudo o que se propôs tem sido alcançado. A guerra contra a Ucrânia, hoje, pode parecer inevitável para os militares e mesmo para grande parte da sociedade russa, e talvez seja mesmo: mas, qualquer que seja o resultado dela, a partir deste livro e dos fatos decorridos de 1978 para cá, é possível dizer que, mesmo que Putin vença a guerra e derrube o governo da Ucrânia: 1) os EUA serão os grande vitoriosos, pois legitimarão a existência de um tratado militar aparentemente obsoleto; 2) a extrema direita norte-americana deve avançar, talvez recriando a viabilidade de Donald Trump ser reeleito presidente; 3) o setor de petróleo e gás do Ocidente conquistará mercados que estavam destinados, pela proximidade geográfica, à Rússia.
Como cheguei ao livro, como o livro chegou a mim
No Brasil, a obra foi traduzida pela editora Biblioteca do Exército em 1980, início do governo do general João Baptista Figueiredo, e depois fartamente distribuída pelo Círculo do Livro em 1987, equivalente aos clubes de leitura de hoje, mas dezenas de vezes maior, proporcionalmente, do que a Tag Livros, por exemplo.
Minha memória nesse quesito é falha, e não sei qual das edições eu li. O que me recordo é que, em 1986, passei a estudar na Escola Estadual Coronel Diogo Ribeiro, em Miracatu, cidade do Vale do Ribeira, no sul do Estado de São Paulo. Ao contrário do que ocorria na escola de onde vinha, em Martinópolis, no Oeste paulista, na Escola Estadual Professor Adelaide César de Moura Bastos, não havia o que hoje é chamado de “Sala de Leitura”, mas que a gente tratava mesmo por biblioteca. Depois de um ano estudando ali, consegui convencer a secretária da escola a me dar acesso à sala em que os livros ficavam guardados, e tirei emprestado um romance.
Tudo me diz que que foi nesta sala que encontrei a A terceira guerra mundial – Agosto de 1985, que foi escrito, segundo constava na capa das duas edições, pelo general britânico Sir John Hackett “e outros generais e conselheiros da Otan”. Creio que, neste dia, depois de acessar um espaço “inviolável”, feliz da vida com a conquista territorial da biblioteca, peguei o livro, pus na mochila, matei a última aula, pulei o muro que separava a escola da quadra e passei duas horas jogando futebol sob um sol escaldante, em meio àquela umidade de Mata Atlântica raiz do Vale do Ribeira. Ler e jogar futebol era o que realmente me animava naqueles dias.
Mas vamos ao contexto de publicação do livro: no fim dos anos 1970, começo dos 1980, o mundo tinha um grande medo: uma terceira guerra mundial que envolvesse o uso de armas nucleares. No cinema e na televisão, eram grandes eventos filmes como O dia seguinte (de Nicholas Meyer, 1983) e Jogos de guerra (também de 1983, dirigido por John Badham), que problematizavam com muita literalidade e pouca imaginação os cenários com que os generais da Otan trabalhavam. Nada artisticamente comparável a Doutor Fantástico, de Stanley Kubrick, de 1964, quando os problemas nucleares eram menores, mas muito mais intensos – a ideia da bomba nuclear como algo que se tem, mas não se usa, ainda não estava bem enraizada.
Grande apóstola da Guerra Fria, Margareth Thatcher, primeira-ministra britânica, chegou a preparar um discurso para a rainha Elizabeth caso explodisse a Terceira Guerra, que os britânicos consideravam iminente. Tinha até data para ser exibido na televisão: 4 de março de 1983, conforme indicaram os registros do governo britânico divulgados em 2013 pelo jornal The Guardian. No texto, a rainha compararia a situação de 1983 à da eclosão da Segunda Guerra Mundial: “Nunca esqueci da dor e do orgulho que senti, ao ouvir junto com a minha irmã em nosso quarto, as palavras inspiradoras de meu pai [rei George 6º] sobre aquele dia fatal em 1939 [início da Segunda Guerra]. Em nenhum momento eu poderia imaginar que esta tarefa solene, porém terrível, cairia um dia sobre mim”, diz o texto que a rainha poderia ter lido, mas felizmente não o fez (ainda…).
O que diz o romance
Mas voltemos ao romance. Sinceramente, não sei como eu, com meus 13 ou 14 anos, consegui encarar tal jamanta literária. O livro dos generais da Otan é puro material de propaganda armamentista, e relido hoje (corri num sebo e o comprei nesta semana por R$ 8, que citarei neste texto), fica evidente que sua publicação e ampla difusão foram uma ação de marketing para justificar uma nova aceleração da corrida armamentista pelo Ocidente. Hoje, isso recebe, muitas vezes, o nome de guerra híbrida, turbinada pelas redes sociais.
Em linhas gerais, ele afirma que, se a guerra tivesse estourado até 1977 (ou seja, quando a redação do livro foi provavelmente encerrada), o Ocidente seria derrotado, dada a desorganização da Otan. Mas, entre 1977 e 1985, operações “discretas” e constantes haviam preparado a Otan para enfrentar as novidades táticas e estratégicas do Pacto de Varsóvia. Ou seja, o livro é também um programa de ação, divulgado para o grande público, para que os investimentos militares no Ocidente fossem mais bem recebidos pelos cidadãos e cidadãs do “mundo livre”.
Reprodução
Capa da edição do Círculo do Livro (1987) de ‘A terceira guerra mundial’: material de propaganda armamentista
Resumir o livro a material de propaganda, no entanto, talvez seja insuficiente. Ele é, também, um material pedagógico, provavelmente usado nas academias militares da Otan e do próprio Brasil (a publicação pela Biblioteca do Exército, inicialmente, também sugere isso). Se eu conhecesse bem o sistema educacional dos Exércitos, diria que é uma obra de ficção usada para traçar cenários possíveis de combate, região a região, e “ensinar” os militares a lerem grandes movimentações políticas e associá-las a decisões militares na ponta.
Nesse sentido, é interessante também notar como, ao fim do livro, os autores jogam grande peso nas questões de conformação de redes e equipamentos eletrônicos, uma prioridade militar dos anos vindouros, em que o presidente norte-americano Ronald Reagan (1981-1989) sonharia com o projeto “Guerra nas Estrelas”, uma rede de satélites militares capaz de interceptar mísseis balísticos soviéticos e que deveria combinar alto grau de informatização e automatização, ou seja, eletrônica.
Do ponto de vista ideológico, o livro parece beber diretamente das ideias de Samuel P. Huntington, já bastante influente na linha dura norte-americana nos anos 1970 e que, que nos anos 1990, tornaria-se um best seller mundial com o livro O choque de civilizações. Mas, para o leitor comum que o recebeu como um dos livros do Círculo do Livro (ou pegou um exemplar na biblioteca escolar), o que impressiona são os cenários de confronto, narrados essencialmente a partir de características militares – conformação geográfica das regiões de combate e/ou o número de equipamentos e tropas disponíveis para cada força em conflito.
Como começa a Terceira Guerra Mundial
O confronto entre o Pacto de Varsóvia (leia-se União Soviética) e a Otan começa na fronteira entre as Alemanhas Ocidental e Oriental, o que hoje já não existe. Há conflitos anteriores, como o afundamento de um navio-transporte iraniano (lembrando que o livro foi escrito antes da Revolução Iraniana, e portanto o Irã é um aliado do Ocidente) e de um navio de informações eletrônicas norte-americano, no golfo de Aden. “Os ataques soviéticos do dia 29 [de agosto] podem, até certo ponto justificadamente, serem considerados os primeiros tiros disparados na Terceira Guerra Mundial” (p. 70), afirma o romance.
Em 17 de julho de 1985, após provocar um levante pró-soviético na Iugoslávia, “uma Divisão Aerotransportada soviética, após um salto sem resistência, conquistou os acessos a Belgrado. Ao mesmo tempo, uma Divisão de Infantaria Motorizada soviética, vinda da Hungria, cruzou a fronteira pela estrada de Budapeste-Zagreb, acompanhada por uma segunda Divisão. O Comitê pró-soviético foi reconhecido como governo provisório da Iugoslávia” (p. 103).
O conflito com a Otan começa em 4 de agosto de 1985, às 4 horas da madrugada. “Para alguns, a notícia trouxe uma curiosa sensação de alívio. Pelo menos a incerteza havia terminado. Para muitos outros, particularmente os membros dos governos e das forças armadas dos países Aliados, ela levantava a angustiante questão de que se havia feito o suficiente quanto às defesas da NATO, desde os anos 70, para reparar os danos dos anos de restrição. Poderia o Ocidente, na realidade, sobreviver?” (p. 155).
A situação pré-guerra mostrava tanto a aliança ocidental quanto o Pacto de Varsóvia buscando corrigir suas fragilidades estruturais. Se a Otan tinha domínio nos oceanos, era ali que os soviéticos buscavam crescer; já o Pacto de Varsóvia tinha domínio nas forças de terra, e foram nesse campo algumas das mais importantes ações do Ocidente antes da eclosão dos combates.
No ataque inicial, as forças soviéticas obtêm bons resultados, avançando rapidamente em diferentes pontos em direção à Europa ocidental. Mas os investimentos imaginados (e depois efetivamente realizados) da virada dos anos 1970 para os 1980 fizeram-se sentir e, em determinado momento, a guerra em terra se equilivra e, no próprio mês de agosto de 1985, aos poucos a Otan vai virando o jogo. Os soviéticos, então, decidem recorrer a armas nucleares para evitar uma derrota e, nesse momento, o romance traz informações pertinentes sobre como os militares de ambos os lados esperavam que ocorresse um eventual conflito atômico.
Em A Terceira Guerra Mundial, nem União Soviética (leia-se Rússia hoje) nem Estados Unidos e Otan trabalham com um cenário de guerra nuclear total. A ideia do uso da força nuclear é levar a uma negociação e tentar, no caso da União Soviética, interromper a virada ocidental em terra. Como os vilões são os soviéticos, evidentemente são eles que lançam a primeira bomba. Daí, o Ocidente tem de escolher: recua ou dobra a aposta. Adivinhem… (a resposta está após o próximo parágrafo).
Próximo do fim do livro, no capítulo 25, ocorre o ataque soviético. O alvo é a cidade de Birmingham, no Reino Unido, escolhida por ser um centro de produção armamentista e também por seu peso simbólico: não era a capital de um dos líderes da aliança ocidental, mas estava próxima o suficiente (menos de 200 km de carro) para que a destruição da cidade fosse sentida em Londres, onde os dirigentes dos países da Otan estavam reunidos: “Era importante deixar claro aos americanos que este era um ataque isolado com o objetivo de demonstrar o que poderia acontecer se eles não concordassem com as exigências soviéticas. Ele não deveria ser encarado como o prelúdio de uma ofensiva nuclear geral. Seria de esperar que ocorresse alguma retaliação, porém se os sinais fossem bem compreendidos esta deveria ficar limitada a um ataque mais ou menos equivalente” (p. 322).
A retaliação ocidental: ataque à Bielorrússia
Prometi responder à adivinhação do penúltimo parágrafo. A resposta é que o Ocidente quadruplica, no mínimo, a aposta. No momento em que a bomba explode em Birmingham, “o presidente dos Estados Unidos estava falando com a primeira-ministra britânica. Eram 1035, Hora Média de Greenwich, ou 0535, Hora Standard do Leste em Washington”.
Nessa conversa, os dois concordaram com a necessidade de uma “retaliação imediata”, “nem que fosse só para evitar um fulminante declínio no moral civil e militar”. O resultado prático: após a consulta, o presidente francês concordou com o ataque, e os outros aliados foram gradativamente informados (o que, aliás, mostra bem a hierarquia da Otan).
Dois submarinos nucleares lançadores de mísseis balísticos (SSBN, no jargão militar), um norte-americano e um britânico, liberam dois mísseis cada um, tendo como alvo a cidade de Minsk, na Bielorrússia (atualmente Belarus). As ogivas múltiplas dos quatro mísseis explodiram em sucessão, tendo como epicentro o centro da cidade: “O efeito foi cataclísmico. Foi o horror de Birmingham repetido, somente que muitas vezes pior”.
Aqui, é interessante notar como a Otan também evita o ataque a Moscou, procurando um alvo equivalente, ou seja, uma cidade importante, mas não a capital da União Soviética (embora capital de uma República, e não simplesmente uma cidade russa de porte). Minsk está mais distante de Moscou (713 km de carro), mas, interessantemente, num raio próximo ao de Kiev (863 km), o que faz pensar sobre a importância estratégica da capital ucraniana para os soviéticos e, atualmente, para os russos.
Com essa explosão, a guerra perde o sentido original, e o regime soviético se desestabiliza. Repúblicas proclamam independência, e um golpe de Estado, liderado por um nacionalista ucraniano, acaba com o regime comunista da União Soviética.
Ficção e realidade: A Terceira Guerra Mundial e a guerra em curso
Não quero, aqui, fazer uma associação direta entre o romance e a realidade histórica. Mas, se pensarmos no longo prazo e fizermos as devidas adaptações, vivemos uma guerra de duração mais longa do que a sucessão recente de acontecimentos faz parecer. E podemos dizer também que, a julgar pela literalidade deste romance, alguns objetivos de longo prazo da Otan parecem nortear as encrencas de curto, que apaixonam e ganham seguidores os mais inusitados.
Vamos resumir a coisa assim: de 1978 para cá, a aliança militar dos Estados Unidos com a Europa ocidental conseguiu: 1) destruir a unidade do mundo socialista e depois dissolvê-lo totalmente; 2) fragmentar e destruir a Iugoslávia, o Estado eurossocialista (assim é tratado no romance) alternativo da Iugoslávia (e de quebra pequerrucho socialismo albanês); 3) unificar a Alemanha sob o capitalismo e trazer para o campo ocidental (e para a Otan) Polônia, países bálticos, Hungria, Romênia, Bulgária, entre outros; 4) derrubar o regime pró-russo da Ucrânia em 2014 e promover a ascensão de políticos nacionalistas, alguns neofascistas (e até neonazistas), mas pró-Estados Unidos, no país.
Todos esses pontos de tensão são centrais no romance A Terceira Guerra Mundial, ainda que a ordem dos acontecimentos não seja a mesma.
Num segundo movimento, não menos importante, do governo Obama para cá, foram desmontados os Brics, país por país: 1) a África do Sul, o mais frágil deles, perdeu relevância inclusive na África após o racha no partido governista e o afastamento do presidente Jacob Zuma, em 2018, e a ascensão de um governo, do ponto de vista das relações internacionais, menos apto a sonhar com independência e liderança na África; 2) no Brasil, o impeachment de Dilma e depois a eleição de Bolsonaro colocaram no poder grupos anti-Brics, que priorizaram as relações com os Estados Unidos (o voto anti-Rússia no Conselho de Segurança da ONU confirmou essa posição, apesar da visita de Bolsonaro a Putin); 3) na Índia, pela via eleitoral, também assumiu um governo de ultradireita mais distante de Pequim e de Moscou; 4) a Rússia, após uma série de avanços da Otan que feriram os acordos pós-Guerra Fria, viu-se impelida a escalar militarmente a disputa, o que seguramente lhe trará prejuízos econômicos e, sobretudo, diplomáticos no curto e médio prazos.
A China, assim, que resta como a única potência econômica a parear com os Estados Unidos, mas ainda bem menos poderosa militarmente, tem, portanto, razões para imaginar que serão contra ela os próximos passos desse romance cheio de capítulos que estamos vivendo.