A população de Cuba tem exigido que o governo do presidente Miguel Díaz-Canel tome providências para solucionar a crise energética no país, que registra escassez de energia elétrica e combustível, cenário que a Presidência de Cuba aponta como consequência do bloqueio econômico dos Estados Unidos.
O cenário, para a economista e pesquisadora sobre o mercado imobiliário de Cuba Aline Miglioli, é que esses protestos “nem sempre significam pedidos pelo fim do regime socialista, pelo fim da revolução ou pela troca de governo”.
A Opera Mundi, Miglioli disse que, na verdade, as manifestações são em essência “contra a solução dada pelo governo”, no caso, a racionalização de energia elétrica, com longos cortes nas principais cidades cubanas, como Havana e Santiago de Cuba.
Na análise da pesquisadora, essas manifestações ocorrem porque o povo cubano “é muito crítico”, ainda mais em um assunto que afeta a vida cotidiana das pessoas, como a energia elétrica.
A situação tem como ser solucionada?
Miglioli avalia que todas as alternativas para solucionar a crise de energia na ilha socialista recaem em buscar outros parceiros internacionais. Um desses seria a China por “despontar com tecnologias de energia renovável e limpa”, no lugar do clássico petróleo utilizado pelo país.
A economista também sugere a Rússia, mas considera que a energia do país vem do petróleo e gás, produtos que – considerando a distância entre Moscou e Havana – encontrariam dificuldades logísticas ou impossibilidades de transporte de fato, no caso do gás.
Por isso, ela destacou a China como ator fundamental nesse momento, já que é um “momento” do país de Xi Jinping “fazer investimentos maciços e fortalecer mais a amizade com Cuba”.
“E acredito que estão percorrendo este caminho. Não tenho nenhuma informação diferente das que estão na mídia, mas acredito que estão caminhando para fortalecer essas relações”, avaliou sobre as sugestões possíveis dentro da realidade de uma Cuba há mais de 60 anos bloqueada e que não deve ter sua situação revertida pelos Estados Unidos.
Como funciona o setor energético de Cuba?
“Cuba tem uma dependência energética do petróleo em uma situação em que não é fácil conseguir petróleo. Hoje, o país não só enfrenta o alto custo do petróleo, a dificuldade de encontrar parceiros comerciais, mas também a dificuldade de logística”, disse Miglioli.
Isso por que, o bloqueio imposto pelos Estados Unidos à ilha tem “dimensões desconhecidas” e que uma delas envolve questões logísticas.
“Os navios que atracam em Cuba precisam ficar em quarentena por meses e não podem atracar nos Estados Unidos depois. Mas Cuba fica a 200 quilômetros da Flórida, nos EUA. Em que plano logístico faz sentido um navio que faz comércio estrangeiro passar por Cuba e não passar pelos Estados Unidos?”, explicou ela, apontando que o petróleo, além de caro e pesado de transportar, ainda enfrenta essa imposição logística do bloqueio para chegar a Cuba.
Se o petróleo não consegue chegar à ilha, por que não abrir uma hidrelétrica, instalação para energia solar ou nuclear? E a resposta é simples: Cuba não tem rios ou capacidade tecnológica e financeira para importar os insumos necessários para promover formas alternativas de energia.
Já sobre a última opção, a União Soviética doou à Cuba em 1976 uma estação de energia nuclear, mas a URSS caiu e o projeto não foi finalizado. “Cuba não conseguiu de maneira autônoma reanimar esses investimentos e a estrutura foi se deteriorando de forma que hoje é muito mais custoso terminar essa obra”, afirmou Miglioli.
Assim, mesmo com a dificuldade dos barris de petróleo chegarem a Cuba, o país ainda depende quase que exclusivamente deste tipo de energia, segundo a especialista.
Mas, segundo Miglioli, a ilha nem sempre teve essa dificuldade para manter sua matriz energética: “quando a Venezuela estava em uma situação melhor, os acordos bilaterais permitiam a entrada de petróleo em Cuba. E quando a ilha estava no bloco de países socialistas, a logística do petróleo era muito facilmente resolvida porque a União Soviética fornecia”.
No entanto, quando acabou o fornecimento de petróleo pela União Soviética, Miglioli apontou que a indústria privada ou não tinha interesse ou não conseguia comercializar com Cuba, então foi estimado um “Dia Zero” em que não haveria energia elétrica no país.
A crise é culpa dos Estados Unidos?
Em meio aos apagões, cortes de energia elétrica e protestos populares, o governo socialista da ilha tenta administrar a situação e aponta um culpado: o bloqueio econômico dos Estados Unidos.
“Como parte do seu bloqueio genocida, o governo dos EUA está determinado a privar Cuba do fornecimento de combustível, uma medida de guerra não convencional que viola o Direito Internacional e prejudica cruelmente as famílias cubanas”, acusou o ministro das Relações Exteriores de Cuba, Bruno Rodríguez, no início de abril.
Como parte de su #BloqueoGenocida, gobierno de EEUU se empeña en privar a Cuba de suministros de combustible, medida de guerra no convencional que viola el Derecho Internacional y daña de forma cruel a las familias cubanas.#MejorSinBloqueo pic.twitter.com/NB8Cx6yXJu
— Bruno Rodríguez P (@BrunoRguezP) April 3, 2024
A declaração do chanceler não é inédita por parte do governo cubano. O presidente Díaz-Canel afirmou que a escassez no país é gerada “pelo bloqueio econômico, comercial e financeiro imposto pelos Estados Unidos”.
Miglioli criticou que as “mídias tradicionais, de direita e conservadoras culpam o sistema político cubano, a Revolução e seus líderes, afirmando que os cubanos colocam tudo na conta do bloqueio” sempre que manifestações acontecem no país.
“Nem tudo é bloqueio”, reconhece a economista. “É preciso dizer que existiram decisões que não deram certo e falhas, como em toda a economia. Porém, esses erros aconteceram em uma situação muito agravante que é o bloqueio econômico imposto pelos EUA”, disse.
A pandemia da covid-19 foi outro fator que interferiu diretamente na economia de Cuba, afetando um dos propulsores da economia da ilha que é o turismo. Além disso, a guerra na Ucrânia impacta diretamente a produção primária cubana, dependente de fertilizantes.
A Opera Mundi, Miglioli também explicou que Cuba tem uma economia planificada, modelo caracterizado pela administração do Estado, e que leva em consideração os recursos escassos no país – sejam eles por causa do bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos desde 1962 sob o governo de John Kennedy, ou mesmo pela localização natural do país (desprovida de recursos naturais e distante de quem poderiam ser seus aliados políticos, como Índia, China, Vietnã e Rússia).
“O bloqueio é muito mais do que um bloqueio comercial. A gente às vezes acha que o bloqueio significa que os cubanos não podem comprar nada dos Estados Unidos, como ter Iphone. Mas não é bem isso. O bloqueio é muito extenso e determina que cubanos não podem comercializar com empresas norte-americanas. Mas não só isso, diz que os Estados Unidos não podem comercializar com nenhuma empresa estrangeira que também comercialize com Cuba”, ressaltou.
A economista exemplifica para facilitar a compreensão: “se uma empresa brasileira vender um frango para os Estados Unidos e esse frango tiver consumido algum produto que veio de Cuba, as empresas norte-americanas não podem mais comercializar”, esclareceu ao evidenciar o dilema das empresas que poderiam comercializar com a ilha, mas “fechariam uma porta muito grande” com os EUA.
Outra dimensão do bloqueio norte-americano é a transação monetária e o dólar, afirma Miglioli: “Cuba é um país que não tem dólar. Ele não consegue transacionar em dólar porque existe uma imposição dos Estados Unidos e isso dificulta a forma de operar a economia”, que mundialmente é centrada na moeda norte-americana.
“Desde a década de 90 Cuba tenta lidar com essa falta de dólar para poder comercializar no mercado internacional. E para não dolarizar a economia, o país decidiu adotar duas moedas: uma moeda passou a ser conversível em dólar e a outra moeda era a nacional. Isso criou um problema na economia porque tinha elementos comprados em moeda nacional e outros na conversível, fazendo com que cada um tivesse uma taxa de câmbio entre si e entre o dólar, o que era complicado para operacionalizar”, argumentou.
Diante dessa dualidade na moeda, a especialista disse que durante a pandemia os economistas do governo cubano colocaram em prática um plano de longo prazo para unificar a moeda cubana, tornando necessária a escolha de apenas uma das taxas de câmbio.
“Eles desvalorizaram a moeda cubana e isso deu um choque na economia. Deu início a um processo inflacionário muito alto porque há uma taxa de câmbio sendo comercializada no mercado paralelo e a escassez que é natural da economia cubana, que hoje é uma economia sem moeda e sem possibilidade de negociação estrangeira para obter crédito internacional”, concluiu.