“Meu mais intenso desejo é ver verdadeiras escolas de aviação no Brasil. Ver o aeroplano – hoje poderosa arma de guerra, amanhã meio ótimo de transporte – percorrendo as nossas imensas regiões, povoando o nosso céu, para onde, primeiro, levantou os olhos o Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão”, escreveu Alberto Santos Dumont em seu último livro, a autobiografia O que eu vi; o que nós veremos, lançada em 1918.
Ele testemunhou o avião ser usado para matar na Primeira Guerra Mundial e em outras frentes, como o movimento paulista de 1932. Fatos que o abalaram. Mas suas palavras também eram visionárias, o que o deixava orgulhoso.
“Desde o início da guerra, os aperfeiçoamentos do aeroplano têm sido maravilhosos”, afirmou num trecho da obra de 1918 ao se mostrar surpreso: “o mais espantoso acontecimento foi o desenvolvimento dos canhões para aeroplanos. (…) Imaginai o poder deste terrível fogo lançado de um aeroplano!”.
Mas 69 anos depois dessa premonição, o sonho de Santos Dumont registrado em livro virou um tormento real para os moradores da pequena cidade de Formiga, em Minas Gerais. Aviões de guerra povoaram o céu do local e jogaram bombas.
Era uma quinta-feira de manhã, dia 2 de abril de 1987. Dia quente. Centenas de alunos da Escola Estadual Aureliano Rodrigues Nunes estudavam num galpão dentro do Parque de Exposição Luiz Rodrigues Belo Pinto. As aulas estavam sendo ministradas provisoriamente no local devido a uma reforma no prédio do grupo escolar.
Já havia passado das 11h30 quando dois aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) começaram a sobrevoar o bairro Alvorada. Davam rasantes em altíssima velocidade provocando um som ensurdecedor. Donas de casa, crianças e moradores do local já estavam se acostumando com a barulheira. Não sabiam, mas Formiga estava na rota de treinamento dos pilotos da FAB, uma cidade com cerca de 50 mil habitantes na época.
Coincidência, Santos Dumont aparece de novo nessa história de Formiga. Em seu livro de memórias, o brasileiro pai da aviação havia sugerido que uma área próxima da capital do Rio de Janeiro poderia abrigar um campo de pouso. “O nosso governo possui, a duas horas do Rio de Janeiro, o esplêndido e vasto campo de Santa Cruz, com perto de duas léguas quadradas, absolutamente planas”, escreveu em 1918.
E não é que Dumont era bom de previsão. Tal área localizada na região de Santa Cruz, zona oeste do município do Rio de Janeiro, virou uma base aérea da FAB em agosto de 1944. Exatos 14 anos antes de sua criação, foi lá também que se construiu um amplo hangar que abrigou o famoso dirigível Zeppelin durante sua passagem pela Cidade Maravilhosa, em maio de 1930.
É na base aérea de Santa Cruz que estão localizadas várias unidades da FAB, com caças de guerra e supersônicos. De lá partiram naquela manhã de abril de 1987 os caças que protagonizaram o bombardeio sobre Formiga.
“Primeiro vieram os aviões. Aquele barulhão enorme. Parece que estavam voando baixinho, parecia guerra. Iam para lá e para cá. A gente ficava até doida com o barulho. Aí, de repente, do nada a gente só chegou a ver o barulho da bomba caindo. Foi um estrondo tão grande que voou pedaço de asfalto em cima da casa. Teve muita poeira e muito pedaço de asfalto em cima das casas. Quando a bomba caiu, a gente sentiu um barulhão tão forte que a casa tremeu, tremeu tudo”, lembra Elenice Lucia Simão, hoje com 47 anos de idade e que na época tinha entre nove e 10 anos, a Opera Mundi.
O que seria um treinamento de rotina transformou totalmente a vida dos moradores de Formiga e tornou a cidade conhecida internacionalmente. Dois caças F5 do 1º Grupo de Aviação de Caça haviam decolado da Base Aérea de Santa Cruz, voaram por cerca de 540 quilômetros até Formiga.
A missão era fazer uma simulação de ataque a uma ponte. A FAB não confirma essa informação, nem mesmo os nomes dos pilotos das duas aeronaves. Aliás, o Ministério da Aeronáutica foi procurado pela reportagem para obter informações sobre este incidente que poderia ter matado centenas de pessoas. Mas sequer houve retorno com uma resposta.
Nem mesmo a Lei de Acesso à Informação foi respeitada. Protocolado em outubro passado, requerimento não obteve retorno positivo até o momento.
“A gente não conseguiu ver a bomba caindo. Foi aquele barulho e pronto”, explicou dona Elenice, que ainda hoje mora no mesmo local. Não foi uma bomba. Foram duas bombas projetadas por um dos caças da FAB.
Uma delas atravessou o muro do Parque de Exposições bem ao lado de uma sala de aula. A outra espatifou um canteiro com grama entre a rua Bias Fortes e Avenida Jucá de Almeida, em frente a esse muro do parque. O relógio marcava 11h45. A cidade parou. O estrondo da queda pode ser ouvido a quilômetros de distância.
“Eu estava trabalhando bem perto. Depois daquele barulhão danado, pararam todo o trânsito. Fui correndo ver o que havia acontecido. A bomba abriu um buraco de sete metros de profundidade”, disse o pedreiro Remaclo José Rodrigues, conhecido como Reis, hoje com 58 anos de idade.
Reis observa que uma das bombas ficou espetada dentro do buraco aberto no chão onde hoje há uma praça. “A outra caiu bem ao lado do galpão onde uma professora dava aulas. Tinha umas 300 crianças estudando no galpão. A escola lá em frente estava em reforma. Se acertasse o galpão ia morrer muita gente”, estimou.
A escola que escapou da bomba da FAB é hoje de Ensino Fundamental, antigo primário e ginásio.
Bomba de treinamento
As bombas de Formiga não continham explosivo. Eram munição de exercício, uma bomba inerte. Mas tinham mais de um metro de comprimento, pesando aproximadamente 250 quilos cada.
Segundo o Glossário das Forças Armadas (MD35-G-01), munições de exercício são cartuchos e seus componentes, o que inclui balas ou projeteis, cápsulas e propulsores utilizados nas armas, sem carga de arrebentamento, que utiliza lastro inerte ou carga sinalizadora no lugar de explosivo, destinada a exercício de tiro ou lançamento. No caso de Formiga a bomba era recheada de concreto.
Bomba aérea inerte não guiada contém material denso e inerte, normalmente concreto, explica o manual da FAB. Num treinamento, o alvo do exercício é destruído usando a energia cinética da bomba, produzida ao cair.
Mesmo sendo equipamento para exercícios de guerra, bombas aéreas inertes chegaram a ser utilizadas como arma de guerra também. Os Estados Unidos bombardearam alvos no Iraque em 1991. Já a Força Aérea da França utilizou esses artefatos em 2011, na Líbia. Houve vítimas fatais dessas ocasiões.
Informações divulgadas pela imprensa brasileira na época do bombardeamento sobre Formiga revelam que a FAB alegou ter havido um desprendimento involuntário das bombas, porque não haviam sido travadas corretamente nos cabides subalares. É nestes cabides que ficam armazenadas as armas e bombas nos aviões. Os voos rasantes e as manobras teriam provocado a queda, segundo explicações veiculadas em 1987.
“Foi uma tragédia muito grande para a cidade, um ato de grande irresponsabilidade da Aeronáutica. Pega-se dois caças supersônicos e se põe na mão de dois jovens. Não houve seriedade para tratar o caso”, critica hoje Eduardo Brás Neto Almeida, prefeito do município na época do bombardeio. Não houve vítimas ou feridos, mas ele fala em danos psicológicos provocados nos moradores de Formiga.
A Opera Mundi Eduardo Brás também relatou o perigo existente, quando os petardos caíram a cerca de dez metros onde estava funcionando uma escola estadual. “As bombas foram lançadas ou se desprenderam. Houve uma imperícia muito grande desses pilotos. Poderia ter morrido mais de 250 pessoas, crianças e professores”, avaliou o ex-prefeito.
O gabinete do ministro da Aeronáutica em 1987, brigadeiro Octávio Moreira Lima, segundo reportagens veiculadas à época, trabalhava com a possibilidade de ter havido uma “falha mecânica” a ser esclarecida.
O pedreiro Reis, uma das primeiras pessoas a chegar no local da queda das bombas, contou que o local foi logo isolado e chegaram muitos militares com trajes camuflados. “Trouxeram um trator. Mas cavavam com as mãos, com pás”, disse.
O ex-prefeito mandou que funcionários da administração municipal amarrassem as duas bombas e evitassem que as bombas fossem levadas embora pela FAB. “Era a prova do crime”, explicou, ao apontar que para tentar agradar a população e servidores municipais, os militares resolveram entregar chaveiros e cinzeiros de presente.
Ele lembra ainda que, por vários dias seguidos em abril de 1987, jornais, revistas, programas noticiosos de rádio e televisão mostram notícias sobre o ocorrido. “O Cid Moreira, no Jornal Nacional, falava com aquela voz empostada que a situação estava sem solução. Havia cobrança de uma resposta do governo federal e da FAB”.
Mas foi necessária a realização de muitas reuniões em Brasília, haver a intervenção de políticos, como o deputado federal Ulisses Guimarães, para o problema começar a ser resolvido. “Fizeram galhofa com Formiga. Sempre esconderam os nomes dos pilotos. Qual o objetivo disso? Era treinamento, era o quê?”, questiona o ex-prefeito ainda hoje.
Cerca de três meses depois do bombardeio, em junho de 1987, a Aeronáutica anunciou o pagamento de indenização de Cz$ 1.586.918, hoje algo em torno de R$ 5,5 milhões, para a prefeitura de Formiga. A população teve de se contentar com um pedido de desculpas da FAB. “Crianças e seus pais ficaram traumatizados”, ressaltou o ex-chefe do Executivo.
Parte dessa verba teve como destino a construção da Praça da Bomba, com formato redondo similar a um alvo. No meio há um pedestal com um dos petardos exposto. Uma placa de metal anuncia “O dia em que a Formiga parou”. Se transformou em ponto turístico da cidade.
O dia do bombardeio sobre o município mineiro criou também várias lendas que passam de boca em boca na região. Uma delas é que um dos pilotos da FAB tinha uma namorada que morava em Campo Belo, localizado a cerca de 57 quilômetros de Formiga. E “ele vinha fazer gracinha para ela com o avião”, contam moradores.
Outro fato, também sem comprovação, é que no momento do bombardeio estava sendo realizada uma manifestação na cidade, por causa de problemas na economia, juros bancários altos. Tal protesto havia sido dispersado com a bomba inerte.
Quedas acidentais de bombas fora do Brasil
Fatos similares a este na cidade de Formiga podem ser considerados comuns na aviação. O que não é normal é a censura prévia existente sobre o fato, como vem ocorrendo no Brasil desde 1987.
Em novembro de 2019, a Força Aérea dos Estados Unidos revelou que um caça F16 lançou acidentalmente uma bomba inerte fora da zona de treinamento da Base Aérea de Misawa, nordeste do Japão. O petardo pesava mais de 200 quilos. A informação veiculada pelo Ministério da Defesa relatava que não houve feridos.
De acordo com o governo da província de Aomori, onde fica a base de Misawa, a bomba foi encontrada a cerca de cinco quilômetros a oeste do campo de tiro, onde não há residências. O campo de treinamento está localizado a 20 quilômetros ao norte da base de Misawa e é usado pelos militares dos EUA e pelas Forças de Autodefesa do Japão. É o único local na principal ilha de Honshu, no país, onde podem ser realizados exercícios de tiro e bombardeio ar-solo, de acordo com o Ministério da Defesa japonês, segundo o jornal Kyodo News.
Em Formiga, a FAB não provocou vítimas fatais. O bombardeio se transformou num evento histórico e criou um ponto turístico. “Prova disso é que, hoje, há uma praça no local onde caíram as bombas, inclusive, com uma delas lá, em exposição. Muito se comenta sobre o fato, mas ao menos que eu saiba, não há uma explicação convincente para o incidente”, relacionou Alex Arouca, atual secretário de Cultura de Formiga.