Em 2002, o quadro das eleições presidenciais na França revelava-se bastante complexo, desde as primeiras pesquisas eleitorais divulgadas naquela época. A grande novidade era a força demonstrada por um partido político declaradamente de extrema-direita com um percentual de intenção de votos até então inédito.
Trata-se do Fronte Nacional (FN), cuja principal liderança era o polêmico personagem político Jean-Marie Le Pen. Até o início da década de 80, ele havia sido tratado como uma espécie de caricatura do extremismo conservador, sem que os analistas e nem mesmo os adversários pudessem imaginar que ele viesse a representar algum tipo de mudança mais profunda que estava já em operação nas bases invisíveis da sociedade francesa.
Porém, um conjunto amplo de fatores terminou contribuindo para que o FN saísse de seu restrito círculo eleitoral e de simpatizantes, propiciando a disputa da simpatia política mais ampla em vários setores sociais. A desilusão com o processo de integração no espaço da unificação européia e as conseqüências negativas para os agricultores, os pequenos empresários e os trabalhadores de uma forma geral. As dificuldades enfrentadas pela França no tratamento da questão da imigração, em um contexto de grave crise econômica e de elevado índice de desemprego. A redução paulatina da votação obtida pelo PCF e a transferência de uma parcela de seu eleitorado para o discurso demagógico e xenófobo de Le Pen. A sensação difusa e generalizada de perda da identidade nacional com o processo de adesão à Europa e a abertura de espaço político para o ressurgimento do nacionalismo exacerbado, contra os imigrantes e pela recuperação dos ditos “valores franco-franceses”. Enfim, são muitas as tentativas de explicação para o fenômeno.
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Esse contexto favorece a penetração do discurso emocional contra o imigrante, do sentimento geral contra as nações estrangeiras e reforça o potencial latente da pregação contra a intolerância. Não é por outra razão que a cada nova eleição, a performance eleitoral do FN vinha aumentando. Em 1988 ele obteve 14% dos votos. Sete anos depois, em 1995, Le Pen atinge a marca de 15%.
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Marine Le Pen, da extrema-direita, lidera primeira pesquisa presidencial francesa
Em 2002, a situação fica mais preocupante. No primeiro turno apresentam-se 16 candidatos ao cargo de Presidente da República. A maior parte deles, disputando o eleitorado que poderia ser qualificado como mais progressista politicamente: esquerda e ecologista. Com tamanha pulverização dos votos nessa primeira etapa, deu-se um fenômeno considerado impossível para a maior parte dos analistas e especialistas das eleições francesas até aquele momento. O candidato do FN chega em segundo lugar na disputa, apenas 0,5% à frente do candidato do PS. Ou seja, preparava-se um segundo turno de características delicadíssimas em termos da política francesa. A disputa ficaria entre o candidato da direita, o presidente Jacques Chirac pleiteando sua reeleição, face ao candidato da extrema-direita, Le Pen.
Tem início uma operação de convencimento do eleitorado a respeito da importância de um voto útil no segundo turno. E assim, apesar da profundidade das divergências políticas existentes entre os partidos mais à esquerda e Chirac, cria-se uma atmosfera para se evitar o pior. Ou seja, a sociedade acaba se mobilizando para impedir que Le Pen se tornasse presidente. Apesar das dificuldades políticas para convencer parte do eleitorado mais progressista a votar num candidato de direita, o resultado do segundo turno demonstra que a operação foi exitosa. Chirac obtém 82% dos votos e o FN só consegue um ponto a mais em relação ao primeiro turno, chegando a 18% dos votos. Uma vitória esmagadora contra o risco de um retrocesso significativo. Aliás, um dos fatores que contribui para compreender esse processo de amadurecimento político foi a redução da taxa de abstenção entre o primeiro e o segundo turnos. Ou seja, mais eleitores foram às urnas para evitar o que era encarado como o “desastre maior”.
Como a duração do mandato presidencial havia sido reduzida para cinco anos, as eleições seguintes ocorreram em 2007. Naquele ano, a novidade foi o fortalecimento das intenções de voto em favor de um candidato que corria um pouco por fora do meio mais tradicional das forças de direita. Nicolas Sarkozy surgia no cenário com um discurso mais forte do que Chirac e passava a se apresentar com um perfil de natureza mais populista e mais incisivo no que se refere a pontos polêmicos, como a questão do tratamento conferido pelo Estado francês aos imigrantes e estrangeiros. Ganhando visibilidade como ministro, ele consegue se impor junto ao partido da direita, a UMP, e ganha popularidade para disputar a sucessão de Chirac. Em razão da radicalização de seu discurso, o espaço para as propostas do FN se vê reduzido. Tanto que a votação de Le Pen cai para 10% no primeiro turno. E Sarkozy derrota a candidata do PS, Ségolène Royal, na proporção de 53% a 47% dos votos no segundo turno.
E agora, em maio de 2011, justamente no período de comemoração dos 30 anos da chegada da esquerda ao Palácio do Eliseu, com François Mitterrand, as perspectivas eleitorais para a primavera de 2012 voltaram a ficar complexas. Entre as várias razões, pode-se citar a crise financeira iniciada em 2008 e os efeitos sobre a maioria da população. Sarkozy apresenta atualmente as taxas mais baixas de popularidade desde o início de seu mandato e as primeiras pesquisas de intenção de voto apresentam a candidata do FN, Marine Le Pen (filha do antigo candidato), em primeiro lugar, à frente mesmo do atual presidente da República e dos possíveis candidatos do PS. As reações a tais dados são variadas. Desde o nosso conhecido “pesquisa é fotografia do momento”, “estamos a mais de um ano pleito, é muito cedo”, “os outros partidos nem apresentaram suas candidaturas”, até preocupações mais sérias face ao risco proporcionado pelo crescimento efetivo das intenções de voto no FN.
Assim, começa a se desenhar no tabuleiro sucessório a mesma hipótese verificada em 2002. Ou seja, que se apresentem para um eventual segundo turno um candidato da direita contra uma candidata da extrema direita. Com a dificuldade adicional de que Sarkozy esteja com popularidade em baixa e não haja quase nenhuma disposição das forças de esquerda de chamar um voto em seu favor, ainda que a outra candidatura seja do FN. Além disso, contribui para esse quadro arriscado a possibilidade de lançamento de vários candidatos do campo da esquerda e dos ecologistas, a exemplo do ocorrido em 2002.
Sarkozy tem, é claro, suas preocupações e vai usar toda a força propiciada pela máquina do Estado para chegar no segundo turno em maio próximo. Muito se comenta, aliás, que seu adversário preferido seria justamente a filha de Le Pen, pois haveria novamente um movimento nacional para impedir a chegada do FN ao poder. De acordo com esse raciocínio, seria mais fácil para Sarko derrotá-la do que vencer um eventual candidato socialista, num contexto de polarização esquerda x direita.
Já para os socialistas, a questão reside nos mecanismos de escolha de seu candidato. A antiga equação de resolver entre acomodar as várias correntes internas e decidir por aquela pessoa que reúna as melhores condições de vencer as eleições. Até alguns dias atrás, um dos candidatos com maiores chances era o ex-número um do FMI (Fundo Monetário Internacional), Dominique Strauss Kahn. Político de longa data e intensa atividade na cena francesa, já ocupou diversos cargos ministeriais, inclusive o Ministério da Economia. Porém, acabou de iniciar com dois graves tropeços sua busca de unanimidade como pré-candidato às primárias do PS. O primeiro quando foi recentemente fotografado em passeio pela capital francesa a bordo de um milionário carro Porsche último modelo! Uma flagrante contradição entre discurso e prática de uma autoridade que sai pelo mundo afora a pregar austeridade fiscal, contenção de gastos e revela uma tentação inescapável pelo usufruto das benesses do estilo de vida das elites. E o segundo, mais grave em termos de sua imagem pública, quando foi acusado de agressão sexual contra uma funcionária do hotel em que se hospedava em Nova Iorque. Ao que tudo indica, não há mais espaço político para DSK nas eleições presidenciais. O PS deve decidir sua candidatura em eleições primárias no segundo semestre, com fortes chances para a atual primeira secretária da agremiação, Martine Aubry, e para seu antecessor e ex-ministro, François Hollande.
Quanto às forças à esquerda do PS, as dificuldades devem se situar em como se lançar no primeiro turno, disputando de forma legítima suas propostas junto ao eleitorado, demonstrando seu descontentamento com a gestão de Sarkozy e recuperando a memória do desastre que foram os anos da chamada “esquerda caviar”, quando o PS estava à frente do governo. Porém, devem construir tal estratégia sem correr o risco de contribuir, ainda que involuntariamente, para a chegada de Sarkozy contra FN no segundo turno. Enfim, ainda temos 12 meses de uma interessante evolução da cena política na França, com probabilidade de surgimento de outros fatos inesperados.
* Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10. Texto publicado originalmente em Carta Maior.
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