Ao explorarmos a riqueza da história africana, muitas vezes nos deparamos com narrativas que destacam contribuições significativas para o desenvolvimento tecnológico global. No entanto, entre os muitos capítulos dessa história, há uma área frequentemente subestimada e pouco discutida: as tecnologias ancestrais africanas.
Desde os tempos antigos, as civilizações africanas desenvolveram uma notável habilidade em criar soluções inovadoras para uma variedade de desafios, que vão desde a agricultura até a engenharia. Essas tecnologias não apenas moldaram a vida cotidiana das comunidades africanas, como também tiveram um impacto no mundo moderno.
Uma das áreas mais fascinantes das tecnologias ancestrais africanas é a metalurgia. Por milhares de anos, os povos africanos dominaram a arte de extrair, fundir e moldar metais, produzindo objetos importantes e de valor estético. Deixe-me apresentar o exemplo da notável habilidade dos ferreiros da antiga Núbia, que dominavam a produção de ferro em uma escala que rivalizava com qualquer outra região do mundo antigo.
Além disso, a engenhosidade africana é evidente em áreas como a construção. As pirâmides do Egito são talvez o exemplo mais icônico, mas não único, da capacidade dos antigos africanos de projetar e construir estruturas rigorosas e impressionantes. Não podemos esquecer também das técnicas sofisticadas de segurança utilizadas nas civilizações do Vale do Nilo e dos sistemas de conservação de água modificados encontrados em todo o continente.
A agricultura é outra área em que as tecnologias ancestrais africanas se destacaram. Métodos como a agricultura em terraços, o uso de sistemas de cultivo em pântanos e a seleção de plantas resistentes ao clima foram desenvolvidos e aprimorados ao longo dos séculos para enfrentar os desafios únicos do ambiente africano, contribuindo para a segurança alimentar e a sustentabilidade das comunidades.
Além desses exemplos, há uma infinidade de outras tecnologias ancestrais africanas que merecem reconhecimento e estudo. Desde as técnicas de tecelagem e tingimento de tecidos até os sistemas avançados de medicina tradicional, a África tem sido o berço de uma riqueza de inovações que ecoam até os dias de hoje.
Portanto, ao examinarmos o panorama das realizações tecnológicas, é essencial considerar e valorizar as contribuições das civilizações africanas. Ao mesmo tempo, não apenas honramos o passado, mas também ganhamos uma apreciação mais profunda da diversidade e da criatividade humana em todas as suas formas. As tecnologias ancestrais africanas são um testemunho da engenhosidade e da habilidade das pessoas que devem ser celebradas em toda a sua glória e nossas próximas colunas irão explorar esse tema tão essencial, a começar pela oralidade.
A oralidade como tecnologia ancestral
Em um continente onde a escrita nem sempre era predominante, a oralidade se tornou uma ferramenta poderosa para transmitir conhecimento e cultura. Através de histórias, contos e provérbios, as tradições, valores e sabedoria ancestral eram preservados e passados de geração em geração.
No livro “A Tradição Viva”, Hampate-Bâ, um sábio griô do Mali, nos oferece um vislumbre da riqueza da tradição oral africana. Ele narra histórias ancestrais, ensinamentos e reflexões sobre a vida, demonstrando o poder da oralidade como tecnologia de comunicação e preservação cultural.
“A Tradição Viva” é uma obra seminal que destaca a importância da oralidade na preservação e transmissão da cultura africana. Através de uma série de ensaios e reflexões, Hampâté Bâ ressalta a vitalidade da tradição oral como um meio de preservação da história, dos valores e do conhecimento das comunidades africanas.
A oralidade é valorizada por Hampâté Bâ como uma forma de conexão com as raízes culturais profundas do continente africano. Ele destaca como as histórias, mitos, provérbios e tradições transmitidas oralmente ao longo das gerações mantêm viva a identidade cultural das sociedades africanas.
Além disso, o livro destaca como a oralidade é um veículo para a educação e a transmissão de sabedoria. Hampâté Bâ enfatiza como os griôs (contadores de histórias tradicionais) desempenham um papel crucial na difusão do conhecimento, atuando como guardiões da memória coletiva e como professores que compartilham lições de vida e valores morais.
Ao longo da obra, Hampâté Bâ argumenta que, apesar dos desafios impostos pela modernidade e pela globalização, a tradição oral continua a desempenhar um papel vital na preservação da identidade cultural africana. Ele instiga os leitores a refletirem e valorizarem a riqueza da oralidade, e entenderem que ela é uma fonte inesgotável de sabedoria e inspiração que merece ser cultivada e protegida para as futuras gerações.
Filosofia Africana: da Barca e da Balança
A filosofia africana, presente em diversos textos e tradições, oferece uma visão de mundo única e valiosa. A alegoria da Barca e da Balança, escrita pelo escriba Amen-em-ope, por exemplo, apresenta uma profunda reflexão sobre justiça, ética e o julgamento da alma após a morte.
A professora Katiuscia Ribeiro e o filósofo Renato Nogueira, em seus estudos, exploram a riqueza da filosofia africana e sua relevância para o mundo contemporâneo. Através de seus trabalhos, podemos compreender como a sabedoria ancestral africana pode contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e equilibrada. Nos dois documentários a seguir, exploramos a filosofia africana.
Ambos os documentários foram produzidos por mim, como uma forma de popularizar a filosofia africana a partir de 2019. A minissérie propõe debater a diversidade presente em Kemet, o Egito Antigo. No primeiro vídeo falamos sobre a filosofia africana com “A ética da serenidade”, baseado no icônico texto do filósofo Renato Nogueira, aqui compreendemos a importância da barca e da balança como caminhos para o bem viver no Egito Antigo.
Metalurgia do Ferro: habilidade ancestral
A metalurgia demonstra a sofisticação tecnológica das sociedades africanas ancestrais. A produção de ferramentas e armas de ferro possibilitou o desenvolvimento da agricultura, construção e outras áreas essenciais para a vida social.
A metalurgia do ferro envolve a seleção e fusão do ferro do minério, e há um debate entre especialistas sobre quando e como exatamente ela chegou à África. Alguns historiadores apontam os fenícios, uma civilização do Mediterrâneo oriental, como os pioneiros na introdução da tecnologia da metalurgia do ferro na África. Eles estabeleceram a cidade de Cartago, localizada na moderna Tunísia. Outras evidências, como fornos e escória encontrados em grandes centros populacionais como a antiga Aksum, na Etiópia, e a capital do Reino Núbio, Meroe, no atual Sudão, sugerem que a metalurgia do ferro pode ter surgido de forma independente no Norte da África antes de se difundir pelo continente.
Muitos acreditam que os egípcios do Norte da África foram alguns dos primeiros a experimentar a fabricação de bronze e ferro, há cerca de cinco mil anos. Um dos exemplos mais notáveis da metalurgia do ferro foi descoberto na tumba do jovem faraó Tutancâmon. Entre os fabulosos tesouros funerários, havia uma adaga com uma bainha de ouro feita com ferro proveniente de um meteorito. Outro povo antigo, conhecido como Nok, é creditado por ter introduzido a metalurgia do ferro na África Ocidental, mais especificamente na região da Nigéria, entre 400 aC e 800 aC. Escavações arqueológicas em um local chamado Taruga indicam que os Nok estavam envolvidos na fusão do ferro por um longo período, como evidenciado pela variedade de estilos de fornos encontrados no local.
A expansão bantu, que ocorreu em várias etapas ao longo de aproximadamente mil anos, foi uma migração de povos de língua bantu da África Ocidental para as partes sul e leste do continente, introduzindo o processo de produção de ferro nessas regiões. Embora as descobertas de ferro para extrair o metal da rocha exijam uma quantidade significativa de trabalho manual, aqueles que conquistaram isso permitiram o avanço e o crescimento de suas culturas.
Ainda hoje, a tradição da metalurgia do ferro se mantém viva em comunidades como Gombe, na Nigéria. Os ferreiros de Gombe, utilizando técnicas ancestrais, produzem ferramentas e utensílios de alta qualidade, demonstrando a vitalidade dessa tecnologia ancestral.
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Agricultura Sustentável: aprendendo com o passado
A agricultura no Sahel Ocidental enfrenta desafios importantes devido à manipulação das terras, causadas por condições climáticas adversas, como secas prolongadas e desertificação. No entanto, os agricultores dessa região têm adotado técnicas inovadoras para recuperar suas terras e garantir a produção de alimentos.
Uma dessas técnicas é o uso dos poços Zai, uma prática tradicional que remonta a séculos atrás. Os poços Zai são pequenos buracos em forma de meia lua cavados no solo, geralmente espaçados entre si. Esses buracos são preenchidos com matéria orgânica, como esterco animal, compostagem e sementes, criando micro ambientes propícios para o crescimento das plantas.
A beleza dos poços Zai está na sua capacidade de retenção de água. Nas épocas de chuva, esses buracos funcionam como pequenos reservatórios, captando a água da chuva e permitindo que ela penetre no solo, reabastecendo os lençóis freáticos e nutrindo as raízes das plantas. Esse método simples, porém eficaz, ajuda a combater a erosão do solo e promove a recuperação da fertilidade das terras.
Além disso, os agricultores do Sahel Ocidental se inspiraram na antiga tecnologia africana de captação de água, que remonta ao Egito Antigo. No Egito Antigo, os agricultores desenvolveram sistemas complexos de agricultura para aproveitar as águas do Rio Nilo e fertilizar as terras circundantes. Essa tradição de utilizar recursos hídricos de forma inteligente e sustentável serve de inspiração para os agricultores do Sahel Ocidental, que buscam formas de maximizar o uso da água disponível para irrigar suas plantações e aumentar a produtividade agrícola.
Ao adotar técnicas como os poços Zai e se inspirar na sabedoria ancestral africana, os agricultores do Sahel Ocidental estão dando passos importantes na luta contra a manipulação das terras e na construção de sistemas agrícolas mais resilientes e sustentáveis. Essas práticas não apenas ajudam a garantir a segurança alimentar das comunidades locais, mas também garantem a preservação do meio ambiente e a adaptação às mudanças climáticas na região.
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Geometria Sona: Arte, Matemática e Etnomatemática
A tradição dos Sona é parte integrante da rica herança cultural dos povos Chokwe, tanto em Angola quanto no Congo. Esses desenhos são representações de provérbios, jogos, animais, fábulas e outros elementos. A Geometria Sona é o campo de estudo dedicado às características mais comuns desses desenhos, suas particularidades em cada classe Sona, os algoritmos envolvidos em sua construção e suas categorias.
A cultura dos Quiocos é amplamente admirada, conhecida por sua expressão decorativa através do trabalho em ferro, tatuagens, fabricação de esteiras e cestos, pinturas de murais, esculturas e desenhos na areia conhecidos como Sona. Os desenhos Sona vão muito além de simples representações visuais; eles encapsulam aspectos sociais, culturais, filosóficos e artísticos de um povo. Aprender a criar um desenho Sona não é apenas um rito de passagem para a vida adulta, mas também uma oportunidade de especialização na própria cultura.
Para compreender os desenhos Sona, é essencial compreender a sua construção, os passos envolvidos e os rituais associados à sua execução, incluindo a marcação dos pontos e das linhas. Apesar de ter entrado em declínio após a chegada dos colonizadores, essa tradição foi preservada do completo esquecimento graças aos esforços de pesquisadores e missionários.
Adinkras: filosofia em desenhos
Os Adinkras, símbolos criados pelo povo Akan do Gana, representam valores, provérbios e conceitos filosóficos. Mais do que simples desenhos, os Adinkras são uma forma de comunicação visual que transmite a sabedoria ancestral africana.
De acordo com Elisa Larkin do Nascimento e Luiz Carlos Gá:
“De acordo com a história oral, o conjunto dos adinkra tem origem numa guerra que o rei dos asante – Asantehene – Osei Bunsu moveu contra o rei Kofi Adinkra de Gyaaman, hoje uma região da Costa do Marfim. O rei Adinkra teve a audácia de copiar o gwa, banco real do Asantehene e símbolo da sabedoria e do poder do Estado. Assim provocou a ira do Asantehene, que foi à luta. Vencida a guerra, os asante dominaram a arte dos adinkra, passando a ampliar o espaço geográfico onde impunham sua presença.” (NASCIMENTO, 2009, p.22).
Apesar da negação eurocêntrica de que os povos africanos não teriam produzido escrita, os adinkras se consolidam não apenas como um sistema de escrita, mas como um sistema filosófico de interpretação da vida e passagem de conhecimentos éticos e morais. Ainda para Larkin e Gá:
“Os estudos africanos deixaram de ser exclusivamente uma demanda do movimento social negro para se tornarem uma necessidade de toda a sociedade. Passou a ser matéria de lei a necessidade de assumir o legado africano como uma precondição essencial do aprender e do conhecer. Os adinkra e seus significados nos mostram a razão dessa necessidade: as referências culturais africanas dizem respeito à humanidade toda e ao Brasil como nação.” (NASCIMENTO; GÁ,2009, p.14).[1]
A utilização de Adinkras por ferreiros modernos, que os desenham em portões, grades e gradis, demonstra a vitalidade dessa tradição e sua relevância na sociedade contemporânea.
Ubuntu: uma filosofia para o futuro
A filosofia Ubuntu, presente em diversas culturas africanas, valoriza a comunidade, a interdependência e a compaixão. Em um mundo cada vez mais individualista e competitivo, Ubuntu oferece uma alternativa valiosa, priorizando o bem-estar coletivo e a responsabilidade social.
Segundo Ramose (2001)[2], ubuntu é formado pelos termos ubu e ntu, representando o Ser em seu aspecto dinâmico e integral (ubu) e as manifestações particulares e modos de existência (ntu). Essa filosofia ressalta a interconexão entre os seres humanos e a natureza, enfatizando a importância da comunidade e das relações interpessoais.[3]
A ética do ubuntu, conforme explicada por Saraiva (2019)[4], enfoca as relações humanas dentro da comunidade, buscando uma compreensão abrangente da realidade e uma ética integrada baseada na humanidade e na comunidade. Desta forma, a filosofia ubuntu promove uma vivência comunitária antirracista e policêntrica, valorizando a interdependência entre os indivíduos e a solidariedade.
Malomalo (2014)[5] destaca a visão cosmológica do ubuntu, que concebe o mundo como uma teia de relações entre o divino, a comunidade e a natureza, refletindo os valores e a sabedoria tradicional africana. A filosofia ubuntu, portanto, emerge como um sistema de pensamento que ressalta a interconexão e a interdependência entre todos os elementos da vida, enfatizando a importância da solidariedade e da colaboração para a continuidade dinâmica da existência humana.
Inovações tecnológicas africanas
O continente africano, berço de tecnologias ancestrais, também é palco de inovações tecnológicas modernas. A robô Omeife, o carro elétrico que não precisa ser carregado, os carros autônomos e a van de entrega robótica são exemplos da criatividade e do potencial inovador do continente.
É extremamente importante ligarmos o continente africano ao desenvolvimento tecnológico. Como nos mostra o Adinkra Sankofa, olhamos para trás, aprendendo com o passado, com o objetivo de caminharmos para o futuro. Mostrar o continente africano como possibilidade de futuro contrasta diretamente com a narrativa historiográfica e eurocêntrica de mundo que limita o continente a imagens de guerra, fome e atraso.
O continente africano tem onze nações entre as economias que mais crescem em 2024 de acordo com o Grupo de Desenvolvimento Bancário Africano (African Development Bank Group). O continente encabeça uma expectativa de crescimento econômico maior do que a taxa global de 2,9%, tendo uma expectativa de crescer 3,8% em 2024. África é sinônimo de passado ancestral, presente sustentável e futuro próspero.
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