“Acreditamos que a revolução cubana – por décadas isolada, agredida e difamada – é o processo mais corajoso, radical e digno da história da América Latina no século XX”, afirmam os organizadores do livro “Entre a Utopia e o Cansaço: pensar Cuba na atualidade” (Aline Miglioli, Vanessa Oliveira e Fábio Luis Barbosa dos Santos). Porém, ponderam: “constatar que a Cuba embargada há muito deixou de avançar internamente na direção do socialismo não é uma forma de difamar o processo revolucionário, mas de humanizá-lo, nos afastando de uma visão idealizada da ilha na qual poucos cubanos se reconhecem”.
Com um raríssimo poder de síntese, os três pesquisadores elaboram, na introdução do livro, um posicionamento simultaneamente solidário à revolução, sincero sobre seus limites e fraturas, bem como fundamentado em pesquisas científicas. Para eles, é necessário “reavaliar a visão romântica sobre a revolução cubana, o que não significa diminuir sua grandeza”.
Recém lançado, o livro reúne pesquisas empíricas, originais e atualizadas sobre Cuba da última década, todas com conhecimento de terreno. Os capítulos são abertos por anedotas ou cenas vividas em Cuba pelos próprios autores, situações do cotidiano que iluminam as contradições do dia-a-dia de uma sociedade que se equilibra entre a utopia e o cansaço.
São 22 capítulos de 25 pesquisadores/as (14 brasileiros, 8 cubanos, 2 argentinas, 1 mexicano), que tratam de temas difíceis e polêmicos da ilha hoje, com base em pesquisas bem fundamentadas, cujos resultados são comunicados de maneira concisa e sem academicismos para um público amplo e (eventualmente) leigo. Na sua busca investigativa pela realidade cubana, “Entre a utopia e o cansaço” tem um parentesco imediato com Cuba no Século XXI: dilemas da revolução, publicado em 2017 (com organização de Fabio Luis, Fabiana Dessoti e minha), ambos atrelados ao programa Realidade Latino-Americana da UNIFESP. Seu conteúdo é diverso e toca múltiplos temas relevantes.
Cuba, horizontes e crises
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(Foto: Redfishingboat (Mick O) / Flickr)
Cuba não é mais o país igualitário que foi entre 1960 e 1990, nas primeiras três décadas da revolução. O aumento da desigualdade é um dos pontos sensíveis das fraturas e desafios vivenciados na ilha nos últimos tempos. Nos anos 1980, o índice de Gini cubano foi um dos mais positivos do mundo (0,22), representando uma situação de igualdade maior que a da Eslovênia hoje (o país mais igualitário do mundo em 2023, com Gini 0,24).
Com o colapso soviético e o recrudescimento do bloqueio estadunidense nos anos 1990 e 2000, os cubanos sofreram inúmeras privações e o governo se viu forçado a uma incipiente flexibilização do modelo socialista, abrindo brechas para o aumento das desigualdades. Cuba chegou em 2017 com Gini 0,40, um aumento de quase 100% das distâncias internas de renda desde 1987. Ainda assim, o país segue o mais igualitário e com melhores índices sociais em relação às médias latino-americanas (diga-se de passagem, as piores do mundo quando o assunto é desigualdade).
Entre 2014 e 2016, a distensão das relações entre Cuba e EUA, junto com a abertura à maior circulação de pessoas e negócios entre os dois países, capitalizou um novo setor privado cubano e acelerou as mudanças do modelo socialista anunciadas pelos Lineamientos de 2011. O cenário de dinamismo econômico começou a mudar com as eleições de Trump, que fez recuar o processo de reaproximação, aprofundou o bloqueio e expandiu as sanções.
Há, contudo, um importante paradoxo do período 2014-2016. A reaproximação com os EUA e a possibilidade de encerramento do bloqueio, ao mesmo tempo que dinamizou a sociedade e expandiu a circulação de mercadorias em Cuba, também ampliou desigualdades, especialmente pelo maior acesso às divisas (dólares) para uma parte minoritária da população.
De 2017 em diante, Cuba atravessou uma série de turbulências sobrepostas: a era Trump, as sanções econômicas estadunidenses, a dificuldade de recebimento de remessas com o recrudescimento do bloqueio, a crise da Venezuela, a pandemia, o colapso do turismo, o desabastecimento de produtos básicos e a hiperinflação. Internamente, a medida que coroou essa “policrise” foi a Tarea Ordenamiento, que consistiu em uma política de reunificação monetária e eliminação do que o governo chamou de “subsídios excessivos e gratuidades indevidas”. Pela medida, os salários aumentaram proporcionalmente aos preços, mas se tornaram rapidamente defasados com a escalada hiperinflacionária e não foram reajustados suficientemente. Desde 2021, a sociedade cubana foi lançada à deriva de flutuações de mercado das quais antes era protegida pelo Estado. O poder do dinheiro se tornou mais decisivo do que nunca, desde a revolução, para determinar níveis de bem-estar e acesso a mercadorias.
Simultaneamente, o país se despediu da “geração heróica” dos guerrilheiros no poder, passando o bastão para novos líderes políticos, forjados nas gestões internas do partido comunista. Estes são “herdeiros” de uma hegemonia revolucionária construída por seus predecessores – e não conquistada por eles. Nesse contexto, tornou-se visível que a revolução tem sido um contínuo “gerenciamento da crise”, bem mais do que uma revolução permanente.
A crise múltipla durante a pandemia (econômica, sanitária e política) testou a capacidade do presidente Miguel Díaz Canel para preservar uma das mais impressionantes hegemonias revolucionárias do planeta, sedimentada na subjetividade cubana pela liderança histórica de Fidel Castro. Apesar de ter passado no teste, especialmente nos momentos mais agudos de protestos em 2019 e 2021, Canel hoje governa uma Cuba com mais fissuras e tensões internas do que nunca.
Como o livro sugere em seu título, a busca por uma utopia cada vez mais distante e afogada no passado abriu espaço para um significativo cansaço político e social, especialmente quando o cotidiano é vivido como crise permanente. Entre as principais dimensões de tal crise está a de horizontes e expectativas, perceptível pelo aumento do ceticismo popular e o enfraquecimento relativo dos grandes consensos forjados na história revolucionária.
O livro
“Entre a utopia e o cansaço” trata dessa crise em múltiplas perspectivas, debatendo temas sobre os quais autores nem sempre coincidem. Em comum, todos se orientam com realismo para percorrer a materialidade do socialismo cubano. Entre os assuntos analisados estão:
- o novo setor privado cubano, formado por micro, pequenas e médias empresas com até 100 funcionários (MIPYMES), em comparação com as novas cooperativas;
- a crise de produção de alimentos e os desafios da alternativa agroecológica camponesa;
- o desabastecimento de produtos básicos (alimentos, remédios), a hiperinflação gerada pela Tarea Ordenamiento em 2021, as durezas do cotidiano, como as demoradas filas diante das bodegas;
- os protestos contra o governo vistos em sua complexidade e os determinantes da resposta oficial;
- as fronteiras tecnológicas do capitalismo e as pressões que exercem sobre os valores prioritários da revolução;
- as mudanças das políticas urbanas, o déficit de moradias, o uso turístico da melhor parte da infraestrutura urbana e a recriação de um mercado imobiliário;
- o poder econômico das forças armadas cubanas e suas conexões;
- a continuidade da política imperialista de Trump a Biden;
- o papel da internet na sociabilidade contemporânea e a chegada do Google como poder imperialista subrepitício em Cuba;
- o enraizamento progressivo da indústria cultural estadunidense na ilha;
- as mudanças e continuidades da nova constituição cubana de 2019;
- a religiosidade cubana e o neopentecostalismo na ilha;
- o Código da Família e as tensões de gênero;
- o racismo e o machismo em tensão com certa tradição revolucionária “classista pura”;
- a migração interna, fluxos, tensões e limites da circulação de pessoas dentro da ilha;
- a imigração e a atração econômica e cultural exercida pelo “fora” da ilha, bem como a complexidade das relações entre cubanos dentro e fora.
O livro também conta com duas entrevistas preciosas. A primeira, conduzida por Aline Miglioli, com o economista cubano José Luis García Rodriguez, um dos mais proeminentes quadros econômicos do país, que foi ministro das Finanças (1994-1995), ministro da Economia e Planejamento (1998-2009) e vice-presidente do Conselho de Ministros de Cuba. A segunda, realizada por Vanessa Oliveira, com o politólogo cubano Rafael Hernández, premiado diretor da Revista Temas, que representa um polo vivo de debates, análises e reflexões acuradas sobre a contemporaneidade, crises e alternativas cubanas. Ambos são intelectuais e quadros políticos titulares da sociedade cubana, e identificam com sinceridade os desafios do socialismo cubano em tempos de avalanche neoliberal.
“Entre a utopia e o cansaço” é uma leitura obrigatória para todos que pretendem se apropriar dos debates sobre a revolução cubana, para além das idealizações, mistificações e condenações. Dentro de um matiz solidário à utopia socialista, os autores também reconhecem as frustrações, dificuldades e desesperanças dos tempos atuais.
(*) Joana Salém é Historiadora da América Latina contemporânea, Doutora em História Econômica pela USP e professora da UFABC.