Você pode não saber, mas o calendário eleitoral já está em execução, com prazos definidos em curso, ou que já transcorreram. A gente pensa que as eleições acontecem só no segundo semestre de cada ano par, mas, na verdade o planejamento e as regras para concorrer a uma vaga no pleito eleitoral começam bem antes. A Resolução do Tribunal Superior Eleitoral que trata do calendário eleitoral deste ano indica que já em 06 de outubro de 2023, um ano antes do pleito, iniciaram-se os prazos das providências necessárias para que a eleição dos representantes da sociedade brasileira ocorra com sucesso, como sempre acontece.
Faz sentido: na verdade, todo mundo sabe que uma candidatura a cargo político não surge apenas com a escolha realizada por meio da convenção de um partido ou de uma federação partidária entre o fim de julho e o começo de agosto. Antes dela, as pré-candidaturas estão constituindo-se e realizando ações, eventos e articulações que buscam consolidar o desejo de disputa das vagas de representantes da população brasileira nas eleições.
A propaganda externa de pré-candidaturas não era permitida antes das convenções partidárias, até 2009, quando ela só era autorizada na forma intrapartidária na quinzena anterior à escolha pelo partido das candidaturas. Mas, felizmente, naquele ano a hipocrisia foi revogada e a divulgação das pré-candidaturas passou a ser permitida, desde que respeitadas algumas regras de como realizá-la.
No tocante à propaganda, há algumas prescrições na Lei Federal n.º. 9.504/97 que delimitam sua realização: a vedação do pedido explícito de voto, a possibilidade da exaltação das qualidades pessoais e da trajetória de vida das pré-candidaturas, a participação destas em entrevistas, programas, debates de rádio e televisão, a realização de prévias partidárias, a divulgação dos ato de parlamentares e de debates legislativos, a divulgação de posicionamento pessoal sobre questões políticas em shows, redes sociais, blogs, dentre outros. Mas há uma pergunta que não quer calar: quando começa o período de pré-campanha? Não há definição legal sobre isso!
Ao mesmo tempo em que há algum regramento para a propaganda na pré-campanha, há uma única regra para a arrecadação de recursos no seu transcurso: a possibilidade de arrecadação prévia na modalidade de financiamento coletivo (as famosas “vaquinhas virtuais”) por meio de sítios na internet, aplicativos eletrônicos e outros recursos similares, por empresas previamente cadastradas na Justiça Eleitoral. Esses recursos, porém, só poderão ser usados durante a campanha eleitoral propriamente dita, tratando-se, portanto, de pré-arrecadação apenas. Quanto às despesas, a legislação eleitoral não estabelece regras explícitas, deixando as pré-candidaturas livres para decidirem como realizá-las, desde que não usem forma ou instrumento vedado durante a campanha, como brindes ou a propaganda em outdoor, por exemplo.
A ausência de regras mais detalhadas para as pré-candidaturas é salutar: reforça o caráter prévio, preparatório, do pleito eleitoral, e funciona como “treino”, o famoso “esquenta” das festas, justificando a liberdade do debate de ideias e de divulgação de trajetórias políticas, de vida, de qualidades pessoais que fomentem a discussão no eleitorado, preparando a sociedade para o embate oficial, quando ele for formalizado perante as zonas e os tribunais eleitorais. As pré-candidaturas funcionam como um jogo amistoso, a preparação para o momento decisivo, quando então regras rigorosas serão aplicadas.
Todavia, a liberdade conferida pelas lacunas legais, que poderia ser uma forma de antecipar e fomentar debates de temas importantes para as eleições municipais, a cada ano vem sendo mitigada pelas próprias pré-candidaturas, que antecipam o combate judicial e restringem, nos tribunais, as atividades de seus futuros oponentes.
A judicialização das pré-candidaturas aciona o Poder Judiciário Eleitoral a preencher as lacunas legais, além de reforçar seu papel protagonista de mediador dos embates, subtraindo das demais instâncias e fóruns da sociedade civil, partidárias e das federações essa função, que fortaleceria o cidadão eleitor, a participação popular e a democracia.
Cada vez mais as regras eleitorais vão se espraiando, sendo detalhadas, as vedações fortalecidas, de forma que as autenticidades e espontaneidades são tolhidas em favor da judicialização dos confrontos, desde o momento das pré-candidaturas. Perdemos enquanto cidadãos e eleitores a possibilidade de participar e fomentar os debates e construção de propostas nesse momento prévio, em que deveríamos estar “embriagados” pela esperança que o “esquenta” da festa de democracia poderia nos proporcionar.
(*) Renata Martins Domingos é advogada, Mestre em Direitos Humanos e já trabalhou em várias campanhas eleitorais assessorando juridicamente candidaturas. Também já foi gestora pública e exerceu o cargo de Secretária de Saúde da Prefeitura do município de Conde, Paraíba.