O líder líbio Muamar Kadafi terá seu fim. Será morto ou condenado. Não há dúvida quanto a isso. A questão que se apresentará a partir de então aos que se importam com o direito internacional é a seguinte: pode um grupo de países financiar um movimento rebelde com a intenção de derrubar um presidente, seja ele quem for? E, na hipótese de que Kadafi seja capturado, o que fazer com um presidente deposto nestas circunstâncias?
Julgamento
A primeira pergunta tem a resposta mais fácil. Há três formas de julgar Kadafi. A primeira delas é a mais simples. Basta copiar o que foi feito há cinco anos com Saddam Husseim no Iraque, onde um tribunal local condenou o ex-ditador, que foi pendurado pelo pescoço numa corda e teve sua execução macabra exposta aos olhos do mundo todo pelo Youtube. O direito confere ao Estado de origem do acusado a primazia de seu julgamento. Se o novo governo líbio, controlado pelos que hoje são chamados “rebeldes”, reivindicar o direito de julgar Kadafi com base na legislação doméstica da Líbia, assim será feito.
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A segunda hipótese — usada, por exemplo, para julgar o líder sérvio Slobodan Milosevic em 2001 — é a de criar um Tribunal Penal Ad Hoc que analise os supostos crimes cometidos por Kadafi na Líbia. Isso poderia ser feito caso o governo líbio não possa ou não queira conduzir este julgamento, o que parece pouco provável para um governo novinho em folha, ávido por vingança contra o líder que exerceu o poder na Líbia por 42 anos ininterruptos e prometeu “esmagar” a oposição “sem misericórdia” meses atrás.
Por fim, está a chance de levá-lo ao TPI (Tribunal Penal Internacional), repetindo a solução encontrada para o líder sudanês Omar al-Bashir, acusado de genocídio em 2008 e, desde então, considerado foragido da Justiça. Ontem mesmo, o governo do Panamá — primeiro país latino-americano a reconhecer o GNT (Governo Nacional de Transição da Líbia) — fez “um chamamento para que Kadafi seja submetido à Justiça no TPI”. A Líbia não é um dos 114 Estados-membros do Estatuto de Roma e não poderia, em princípio, ter seu presidente julgado pelo TPI. Mas é possível que o caso siga adiante, havendo consenso entre os demais países que fazem parte do grupo — solução semelhante à encontrada para o caso sudanês há três anos.
Vitória ilegal
Os desdobramentos para Kadafi são previsíveis. Sua sorte dependerá dos tribunais ou da pontaria dos combatentes que agora reviram Trípoli no seu encalço. Menos cartesiana, entretanto, é a análise dos fatos que levaram à derrocada do líder líbio.
A OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e os Estados Unidos financiaram e apoiaram militarmente os rebeldes que depuseram Kadafi. Dependendo do ponto de vista de quem argumenta, isso pode até ser legítimo. Mas, com certeza, não é legal.
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O Artigo 2º da Carta da ONU (Organização das Nações Unidas) de 1945 diz que “os membros da ONU deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado”.
Para burlar esta regra, os países que queriam ver Kadafi fora do poder recorreram a um subterfúgio. Em 17 de março, aprovaram no Conselho de Segurança da ONU a Resolução 1973/2001, que previa o “uso de todas as medidas necessárias” para impedir que o líder líbio cumprisse a promessa feita na véspera, de atacar os rebeldes na cidade de Benghazi “sem perdão e sem compaixão”. Na mesma leva, o governo líbio também ameaçou matar civis, o que justificava, então, a intervenção de tropas internacionais.
Mas já nesta época, havia a desconfiança de que a proteção dos civis mencionada na Resolução 1973/2001 fosse mera desculpa para uma intervenção de fundo político. E foi justamente o que aconteceu.
“Há uma contradição evidente entre as declarações das capitais ocidentais, que dizem que seu objetivo não é derrotar Kadafi, mas realizam ataques aéreos sobre as colunas militares do líder líbio”, disse, em março, Sergei Lavrov, chanceler da Rússia, sem supor que, cinco meses depois, o coronel da OTAN Roland Lavoie diria: “Nossa missão aqui ainda não acabou. Não sabemos onde Kadafi está. Não temos nenhuma pista. Mas continuaremos com nossa missão até que o trabalho tenha sido terminado.”
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O precedente é grave. Sem negar os crimes cometidos por Kadafi e sem questionar a legitimidade da reivindicação dos movimentos internos na Líbia, é possível dizer que o direito, a legalidade, saiu perdendo mais uma vez.
Para as TVs do mundo todo, o que conta é a imagem espetacular do que se considera um enorme sucesso militar. Mas, atrás das lentes, países como a Rússia, de Lavrov, já perceberam que manipular as regras para alcançar um objetivo político conjuntural pode até ser bonito para quem aparece na foto, mas, com certeza, é também um câncer, que mina a confiança na eficácia do direito internacional e mantém qualquer desafeto das grandes potências sob a mira permanente da arbitrariedade.
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