A greve geral convocada pela Central Obrera Boliviana (COB) significa mais um sinal de alerta claro e amplo ao governo do partido de Evo Morales, Movimiento al Socialismo (MAS), do que um rompimento definitivo. Fundada em 1952 na esteira da Revolução Boliviana e baseada principalmente no proletariado mineiro e industrial, a COB goza de uma autonomia histórica dentro do conturbado panorama político daquele país, sendo importante fator de desestabilização de diversos governos desde sua fundação.
O apoio da Central ao primeiro mandato do presidente Evo Morales foi decisivo no sentido de potencializar a governabilidade daquele governo tão marcado pela heterogeneidade de movimentos e tendências a ele associados. Com a base eleitoral do MAS enraizada na periferia paceña e nos municípios do Altiplano (relativamente longe, portanto, da influência da Central), a ação da COB junto ao partido foi então voltada para a construção de uma identidade m ais ampla e qualificada, legitimando o novo governo como um projeto verdadeiramente “obrero” e capaz de levar adiante as demandas históricas do sindicato.
Mais importante do que seu volume eleitoral, ter o apoio da COB significa garantir uma relação harmoniosa com uma instituição que tem reafirmado consistentemente sua forte capacidade grevista – no governo social-democrata de Hernán Siles Zuazo (1982-85), por exemplo, a Central comandou não menos que 756 greves.
Qualificada pelo Vice-Presidente Álvaro Garcia Linera como fruto de uma “direita fascista e cavernosa”, essa greve geral se trata na verdade de uma indicação de que, com o afastamento dos setores mais conservadores bolivianos da política e a adesão de parte da direita “liberal” ao programa do governo, o MAS se depara agora com uma dinâmica e crescente oposição que pode ser identificada à esquerda do partido de Evo Morales.
A última eleição distrital em abril e os eventos imediatamente posteriores mostraram a face desta oposição aos políticos do MAS: indígenas do Altiplano optando por candidatos independentes ou de pequenos partidos, mineiros de Oruro e Potosí intensificando seus bloqueios de estrada e suas reivindicações e a luta da COB por mudanças mais incisivas no sistema econômico. É possível encontrar nesse cenário um apelo à volta ao “espírito de 2003”, quando uma bem-sucedida revolta popular coordenada em grande parte pelo MAS derrubou as reformas neoliberais do governo Sanchez Losada. Fortemente imbuído neste espírito está a idéia de empowerment dos lideres locais rumo a uma construção do poder político que nasce dos conselhos do Altiplano, do Chapare cochabambino e das periferias urbanas para sedimentar-se no Palácio Quemado em La Paz. Nas palavras de um manifestante camponês ao observar a heterogeneidade de movimentos a apoiar a eleição de Morales em 2005: “Hoje o Congresso se reúne na Plaza Murillo”.
Cinco anos mais tarde, a principal reclamação ouvida dos indígenas do Altiplano nas últimas eleições distritais foi referente à falta de sensibilidade do governo para as questões pertinentes às comunidades originárias, com a indicação de políticos profissionais sem base popular para candidaturas municipais. Ignorando as solicitações das comunidades por novos líderes, o MAS optou por investir em membros qualificados do partido e sofreu com essa investida.
Como explicar porém que embora este aparente erro estratégico tenha custado ao MAS derrotas incômodas nos distritos onde o partido esperava uma vitória mais substantiva, o grosso da base eleitoral do governo permaneceu estável? Os trabalhadores urbanos inseridos em relações de trabalho informal, a classe média comprometida com o desenvolvimentismo tradicional boliviano, os camponeses e pequenos proprietários contemplados por programas de governo; estes continuam sendo os grandes r esponsáveis pelos sucessos eleitorais de Morales.
No entanto não se pode deixar de notar a falta de alternativas de esquerda ao Movimiento al Socialismo como possível fonte de apoio popular. Com a Alianza Social de Román Loayza voltada para os setores minoritários e mais radicais das comunidades indígenas e o Movimiento sin Miedo de Juan del Granado Cosio (atual prefeito de La Paz) preso à classe média autonomista paceña, não se encontra na Bolívia outro partido capaz de encarar as demandas da sociedade como um todo sob um viés socialista.
A divisão na esquerda boliviana entre um socialismo proletário tradicional nascido da Revolução de 1952 e um movimentismo indígena encerrado nas questões do Altiplano rural só foi transposta, e ainda de forma incompleta, pela disciplina e organização do Movimiento al Socialismo. Sob este panorama é seguro dizer que grande parte dos amotinados da Central que agora marcham de Callacoto rumo à capital para enfrentar o governo depositaram no ano passado seus votos por Evo Morales.
O processo de formação de identidade e lealdade política desenhado nos últimos anos na sociedade boliviana parece acomodar o voto pragmático no partido visto como mais progressista e a subsequente pressão política por atendimento de demandas, e enquanto a trajetória de sucesso do MAS não for reproduzida por um partido político que esteja preparado para disputar o poder sob estas condições, o povo boliviano parece ter compreendido que a opção que se encerra é entre Evo e as bárbaras elites advindas dos departamentos autonomistas.
*Gustavo Bianezzi Cilia é pesquisador, graduado em Relações Internacionais e mestrando em Ciência Política pela Universidade de Campinas (Unicamp) com pesquisa sobre o MAS e a esquerda boliviana
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