Dona Leonor[1] trabalha há 30 anos como faxineira em uma associação no centro de São Paulo. Vendo as notícias sobre o Rio Grande do Sul na televisão, puxou assunto: “não tem nada mais triste do que ver o trabalho de uma vida inteira embaixo da lama, não é, filha?” E começou a contar sua história. Migrou da Paraíba para procurar trabalho e construiu sua casa no extremo leste da cidade. Quando chove no final do ano, a água e a lama levam os móveis de todo mundo embora. Em novembro precisou fazer um novo carnê nas Casas Bahia para comprar geladeira e cama. Lá se vão mais 24 meses de endividamento. Como ainda não terminou de pagar o kit do ano passado, que também parcelou em 24 vezes, as contas apertaram. “Não adianta, já coloquei até comporta [na casa]. A prefeitura não faz nada. Diz que tenho que derrubar a casa e construir de novo. Mas com que dinheiro?”
O drama de dona Leonor é a realidade de muitas famílias pobres que vivem em áreas de risco. Medo de chuva, dívidas, ódio dos governantes e desesperança já são sentimentos comuns em bairros como Cidade Tiradentes.
Nos últimos dias, no entanto, a tragédia no Rio Grande do Sul impôs essa dura realidade para mais de 2,3 milhões de pessoas. As imagens na televisão e os relatos emocionam, ao mesmo tempo que os números dão a dimensão de uma verdadeira catástrofe: já são 154 pessoas mortas, 98 desaparecidas e mais de meio milhão de desalojadas. (boletim da Defesa Civil de 17/05/2024)
Tomados pelo sentimento de profunda solidariedade, trabalhadores como dona Leonor se mobilizam em todo país, denunciando sua revolta, arrecadando doações e tentando ajudar de alguma forma. O que unifica esse povo é a identidade, é saber que “poderia ser a gente, poderia ser a nossa casa”.
Uma tragédia anunciada
Uma intensa campanha nos veículos de comunicação tenta convencer a população de que se trata de uma inevitável tragédia climática causada pela força indomável da natureza. Afinal, quem pode impedir a chuva?
Na mesma toada, o governador Eduardo Leite (PSDB) procura comover a opinião pública, diz que é “injusto” culpar o governo e a legislação local, pede união do povo gaúcho e ainda se preocupa que as doações atrapalhem o reerguimento do comércio.
O fato é que tudo nessa vida tem consequências. E, nesse caso, o governador decidiu ignorar o Instituto Nacional de Meteorologia, que já no final de abril emitiu um alerta sobre o alto volume de chuvas e risco de enchentes, assim como todos os outros técnicos e cientistas da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural. Além disso, ignorou o relatório de medidas de prevenção às tragédias climáticas produzido por ocasião das enchentes do Vale do Taquari, apenas oito meses atrás. Esse mesmo governador conduziu a alteração de 480 pontos do Código Ambiental, flexibilizando a legislação para autorizar mais exploração.
Sem dúvidas, somada à insuficiente resposta dos governos municipais e estadual, estão os processos anteriores de destruição ambiental causada pelo desmatamento, perda de matas ciliares e assoreamentos dos rios, bem como a construção das cidades em áreas suscetíveis a alagamentos. Já em 2014, o projeto “Brasil 2040: cenários e alternativas de adaptação à mudança do clima” apontava o aumento das chuvas no Sul e outras previsões dramáticas.
Não é demais lembrar que esse processo de emergência climática é consequência direta da exploração capitalista desenfreada sobre a natureza: apesar de todos os alertas, a ganância torna a busca por lucro mais importante do que a iminente destruição da vida na terra. Por hoje, quem sofre é a imensa maioria de trabalhadores nos países periféricos.
Solidariedade e organização popular contra a barbárie
Cinicamente, o banco Santander, que lucrou 9,4 bilhões de reais em 2023, pede doações aos funcionários e clientes para ajudar o Rio Grande do Sul.
No outro extremo, os movimentos sociais organizam uma verdadeira rede de solidariedade popular: o movimento estudantil da UFRGS, por exemplo, criou um ponto de apoio no DCE e já distribuiu oito mil marmitas e até mesmo um abrigo seguro para mulheres e crianças foi levantado pela casa Mulheres Mirabal; famílias pobres abrem as portas de suas casas para abrigar outras e um total de 40 trabalhadores da Sabesp foram enviados para ajudar na recuperação da infraestrutura e distribuição de água potável.
Enquanto persistir a anarquia da exploração do capital, catástrofes serão cada vez mais frequentes, seja em forma de desastre ambiental ou guerra de extermínio. Hoje, mais do que nunca, a célebre frase “socialismo ou barbárie” faz todo sentido.
Em tempo: o Governo Federal deve intervir seriamente com medidas econômicas para ajudar as famílias que perderam tudo. É preciso congelar os preços dos alimentos e aluguéis, perdoar as dívidas, ampliar os programas habitacionais e reestatizar os serviços essenciais que foram privatizados. Sem medo de governar em favor do povo, custe o que custar.
(*) Isis Mustafa é dirigente do partido Unidade Popular pelo Socialismo e 1ª vice-presidente da UNE.
[1] Adotamos Leonor como um pseudônimo.