Sejam ou não especialistas no assunto, homens e mulheres na América Latina têm ouvido e se referido ao neoliberalismo como ideologia e política ou até mesmo, no dia a dia, como um mecanismo de mercado que minimiza o papel do Estado. Isto ocorreu há mais de 40 anos, quando as ditaduras militares da época facilitaram a sua implementação.
O Consenso de Washington fluiu com tanta potência que não foi difícil persuadir os governos autoritários de que a “democracia” sob o neoliberalismo era um sistema econômico, político e social adequado ao país e às próprias estruturas militares, prometendo crescimento econômico, menos pobreza e desigualdade.
E, no entanto, após este longo período, o fracasso no cumprimento destas promessas é evidente e clamoroso. Como se explica, então, esta longa vida do neoliberalismo? E mais, como sobrevive e se renova depois de cada crise que provoca esse descumprimento?
Não apenas isso. Como consegue assimilar ondas gigantescas de protesto popular contra a concentração de riqueza e a desigualdade? Como é que a instabilidade política gerada pelos protestos o fortaleceu ao invés de o enfraquecer? Foi irrelevante que: a Venezuela tivesse um “presidente interino” durante vários anos; Honduras vivesse ansiosa devido ao desejo de privatização dos seus presidentes; Peru tivesse seis presidentes em 7 anos; Equador vivesse em crise permanente após a traição de L. Moreno ao correísmo; Chile presenciasse a queda do seu presidente ultraneoliberal, S. Piñera; Colômbia se mobilizasse massivamente contra a rendição de I. Duque; entre outros.
O curioso destes processos políticos é que a instabilidade é gerada por governos de direita e ultradireita que implementam políticas públicas inscritas no dogma neoliberal. O denominador comum de todas as mobilizações foi a combinação brutal da desigualdade e da crueldade da dominação derivada da concentração da riqueza em poucas mãos. Foi a rebelião contra a ordem estabelecida, contra o neoliberalismo.
Nada disto conseguiu envergonhar o neoliberalismo e ele continuou prevalecendo na América Latina. Consolidou-se apoiada num discurso sedutor de “democracia ocidental” que teve o poder de deslumbrar setores progressistas e alguns de esquerda. Depois de 2008, o neoliberalismo iniciou um período de ressurgimento que terminaria em 2022, ano em que, mais uma vez, a sua validade é posta em causa com o regresso de governos de esquerda e progressistas em mais de 10 países latino-americanos. Embora esta nova onda de esquerda possa levar a pensar que estamos perante um período de crise do neoliberalismo, não há nada que indique que seja terminal, muito menos soam os alarmes para o fim do neoliberalismo.
As sete vidas
O neoliberalismo é um projecto de longo prazo que não termina na imposição de normas extremas de mercado livre, mas na concretização de um objetivo fundamental: a conquista da hegemonia cultural, como forma de dominação política, econômica e militar da sociedade mundial exercida pelas classes dominantes, cuja visão do mundo se torna uma norma cultural aceita e uma ideologia dominante, válida e universal. Nesse sentido, a hegemonia cultural justifica a ordem estabelecida, com um sistema imperialista que subordina e sujeita como benéfica para todos, quando na realidade só beneficia a classe dominante.
A fonte ordenadora do pensamento neoliberal nos remete à Sociedade Mont Pelerin (SMP), criada em 1947 por Friederich Hayek e Milton Friedman que, no estilo de rede transnacional, expressa o pensamento neoliberal no qual inexistem hierarquias convencionais e admite diferenças e conflitos a seu nível. Mais tarde seria denominado “coletivo neoliberal de pensamento” cujo funcionamento é alimentado por uma ampla diversidade de acontecimentos culturais e científicos articulados por um grande contingente de intelectuais que se movimentam nos “circuitos culturais do capitalismo” que, num sinal de poderosa resiliência, veio substituir o SMP quando achou oportuno.
O neoliberalismo, então, deve ser entendido com dimensões temporais e geográficas, com períodos e fases distinguíveis, bem como as suas localizações espaciais. Esta característica o permitiu construir ferramentas para superar os problemas (crises) gerados pelo mesmo sistema, repetidamente, daí as “7 vidas do neoliberalismo”.
Nestas circunstâncias, defender o neoliberalismo tem um objetivo político: o favorecer por um conteúdo de resistência, perspectiva e vanguarda. Ou seja, promove o debate, o confronto ideológico, porque permite testar a consistência da sua ideologia, a viabilidade das suas propostas e se colocar sempre na vanguarda dos processos sociais e políticos onde o indivíduo assume a primazia como essência da sociedade, ao invés do coletivo.
Porém, nem tudo é harmonia no neoliberalismo. As suas contradições internas podem escalar a níveis em que o autoritarismo aparece como a solução temporária mais conveniente, tal como expresso por Trump, Bolsonaro e outros que, para a surpresa de alguns, têm apoio popular.
As “mortes” do neoliberalismo
Não só a esquerda deu o neoliberalismo como morto em cada “crise estrutural” do sistema capitalista (crise asiática de 1997; eleição de D. Trump; onda de governos de esquerda na primeira década dos anos 2000; crise do sistema financeiro de 2008; etc.), como também analistas proeminentes (Mark Blyth, Samuel Moyn e Cornel West) do campo liberal.
Hoje vemos que eles estavam errados porque o neoliberalismo continua com boa saúde e por muito tempo. Talvez tivesse perdido uma das suas 7 vidas após a crise de 2008, mas não, porque como corpo de ideias e diversidade de práticas, o neoliberalismo revelou-se tão ágil como o gato que tem uma capacidade extraordinária de sair ileso de cada acontecimento adverso.
Como explicar esta resiliência do neoliberalismo? As respostas não são simples, mas ajudam a vislumbrar a sua complexidade. Primeiro, considerando a sua enorme capacidade de se aliar ao governo da época; e, segundo, ao admitir a sua penetração no pensamento de concorrentes ideológicos como o conservadorismo e a própria esquerda.
Apesar disso, a discussão sobre o conteúdo ideológico do neoliberalismo se encontra numa encruzilhada. Para amplos setores da esquerda, o neoliberalismo não existe como ideologia e muito menos como categoria de análise, por isso deve ser descartado. Enquanto do campo conservador pensa que o neoliberalismo existe como conceito, metodologia e política pública do qual o FMI faz uso. E, para ser sincero, também é utilizado por governos do chamado campo da social-democracia e da esquerda que metabolizaram a ideologia neoliberal.
Portanto, não é fácil negar o fato de que o neoliberalismo é um fenômeno global que gira em torno de ideias, que inspira ideias e, por isso, a sua morte não poderia ser repentina, mas gradual e a longo prazo. É fundamental compreender que o ponto de chegada do neoliberalismo é a hegemonia cultural no planeta.
(*) Nilo Meza é economista e cientista político peruano.
(*) Tradução Rocio Paik.