Emmanuel Macron determinou a dissolução do parlamento francês no último dia 9 de junho, valendo-se de poderes constitucionais de dar inveja aos presidentes brasileiros. Sua razão, no entanto, foi no mínimo curiosa: a derrota de sua coalizão para a extrema-direita nas últimas eleições parlamentares europeias, ocorrida naquele mesmo dia. O resultado não deveria ter surpreendido ninguém, uma vez que confirmou o que diziam há tempos as pesquisas.
Não, o presidente francês não é obrigado a dissolver o parlamento nacional caso perca as eleições europeias – que, no caso francês, ocorrem quase no meio do mandato presidencial. Tampouco é uma novidade a vitória da extrema-direita. Há cinco anos, ela já havia batido a coalizão macronista, e nem por isso Macron dissolveu o parlamento – ou deixou de vencer, ainda que por margem apertada, a eleição presidencial seguinte, em 2022.
Os historiadores do futuro, certamente, vão se esforçar para indagar as causas dessa dissolução, a menos que Macron confesse os verdadeiros motivos. A priori, seus aliados cogitaram hipóteses de alguma manobra genial, na qual Macron reuniria as forças antifascistas em torno de si, talvez rachando a coalizão de esquerda, que em 2022 lhe tirou a maioria absoluta na Assembleia Nacional.
Representado como a quintessência da virtude política no Brasil, justamente entre o que se diz “campo progressista” – em seus frente-amplismos –, Macron fez uma longa viagem ao país em março deste ano, na qual ele obsessivamente buscava uma rara agenda internacional positiva – enquanto negociava o urânio brasileiro nos bastidores, depois de derrotas dolorosas na África e do fracasso da alternativa mongol.
A verdade é que, às vésperas do primeiro turno da eleição, a extrema-direita lidera as pesquisas, com uma intenção de voto superior àquela que registrou nas eleições europeias. Sua grande adversária, ou a derradeira barricada a transpor é, precisamente, a Nova Frente Popular, coalizão ampla de esquerdas, enquanto a coalizão de Macron, que amarga uma triste terceira posição fundada em um discurso em que equipara seus rivais.
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(Foto: Serviço de imprensa do Presidente da Federação Russa / Wikicommons)
O que dizem as eleições parlamentares?
A Quinta República Francesa nasceu, nos anos 1950, da invenção de uma personagem: “o presidente francês”, o qual foi feito sob medida para o general De Gaulle, retirado de sua aposentadoria para ser um líder forte, suplantando o regime parlamentarista que dominou o país dos anos 1870 em diante. De Gaulle se tornou a figura necessária para uma burguesia que se via às voltas com os fantasmas da descolonização e do comunismo.
Desde então, o país é, na verdade, um super-presidencialismo no qual o presidente tem fartas prerrogativas, tanto para dissolução do parlamento quanto para atropelá-lo, vide o que fez Macron recentemente, na canetada com a qual impôs uma reforma previdenciária – um verdadeiro estado de exceção legislativo, avalizado pelo Conselho Constitucional, pela falta de consenso parlamentar ou vontade de produzi-lo.
No entanto, até os anos 1990, o mandato presidencial de sete anos conviveu com mandatos parlamentares de cinco anos, levando a derrotas presidenciais nas legislativas ou presidentes eleitos sem maioria. Disso emergiram governos de “coabitação”, nos quais um primeiro-ministro e seu gabinete seriam oposição ao presidente da vez – o que ocorreu tanto com François Mitterrand nos anos 1980-90 quanto com Jacques Chirac nos 1990.
Depois do plebiscito de 2000, o mandato presidencial foi reduzido para cinco anos e sincronizado com as eleições legislativas, realizadas pouco depois das eleições presidenciais. Disso resultaram vitórias esmagadoras dos presidentes do momento, incluindo-se Chirac, em seu último mandato, Nicolas Sarkozy, François Hollande e o primeiro Macron – mas não em sua reeleição, um raro caso de presidente que não obteve maioria absoluta.
Disputada em sistema distrital em dois turnos, meses após a eleição presidencial, a tendência pós-2000 era de que a base do presidente eleito fosse às urnas contra adversários desmobilizados. E assim o foi. A diferença em 2022 é que Macron se reelegeu na descendente, para barrar a extrema-direita e, nas legislativas, boa parte das esquerdas se reuniram na forma do Nupes (Nova União Popular Ecologista e Social), tirando a sonhada maioria absoluta do centro.
O rompante atual de Macron, que poderia muito bem continuar a governar e não ter chamado eleições, só pode se explicar no fato de que esperava liderar o combate à extrema-direita. Um gesto surpreendente que moveria o tabuleiro de lugar. Mas o resultado foi que as esquerdas se mantiveram reunidas, e ampliaram essa reunião em nível interno, apesar disso não ter acontecido nas eleições europeias, e a extrema-direita manteve a dianteira.
Uma crise mais profunda do que parece
Envolvido em uma disputa contra a Rússia na qual faz o jogo dos Estados Unidos, mas visivelmente só coloca o interesse nacional francês em risco, o velho pós-colonialismo francês em África entrou em colapso sob Macron. Casos como a revolta da pequena Nova Caledônia, no oceano Pacífico, são rumorosos, mas café pequeno perto da perda do Níger para uma junta militar nacionalista ou a derrota eleitoral no Senegal.
A grande questão é que Macron obedeceu cegamente à sintonia fina do liberalismo internacional, hegemonizado pelo Partido Democrata dos Estados Unidos. Ele simplesmente serrou o galho onde estava trepado e perdeu a segurança energética, supondo que a guerra na Ucrânia seria apenas um problema alemão – e também russo. Mas nada levava a crer que ele faria diferente.
Há sete anos no poder, Macron não fez outra coisa a não ser implementar reformas neoliberais, reprimir e deslegitimar manifestantes, fortalecendo o tipo de economia e de setores econômicos que, hoje, se voltam para a extrema-direita, colocando-a de vez na posição de interlocutora válida – os diálogos entre o antes isolado Reagrupamento Nacional (RN) e o mercado avançam, e tratam de uma agenda de austeridade.
O “sensato”, “cordato” e “racional” Macron apenas repete a fórmula manjada que tem servido para alavancar a extrema-direita no mundo inteiro, e uma vez que isso se avizinha, surge um discurso de que todos têm de correr para salvar a democracia – em algo que conhecemos bem. O fato é que nem isso Macron conseguiu protagonizar, uma vez que amarga o terceiro lugar, com cerca de 20% das intenções de votos parlamentares.
Se o RN, liderado por Jordan Bardella, braço direito de Marine Le Pen, lidera as pesquisas, por outro lado, parece faltar votos para obter maioria absoluta. E a grande questão é se os gaullistas, a direita tradicional, teriam os votos para entregar o governo ao RN, ou teriam vontade de ir por esse caminho – o que é acompanhado por alguns de seus líderes, mas não pela maioria dos candidatos.
O ponto é que as esquerdas não passam do teto de 30% e, nos muitos segundos turnos, teria de haver uma aliança com Macron, ainda que informal, para deter a vitória da extrema-direita. Isso tornaria o próximo governo francês, em qualquer hipótese, instável como nenhum outro na Quinta República – muito embora Macron possa dissolver o parlamento eleito agora em um ano.
O último debate eleitoral mostra que um governo do RN, que pode bater na trave, implicaria no fim do apoio francês à guerra na Ucrânia, mas também em uma agenda anti-imigrante, redução de tributos e do déficit que miram agradar o mercado e, ainda, a negativa de aumentar o salário-mínimo. O que desfaz o mito “desenvolvimentista” da RN e Le Pen, e gera mais conflito em uma sociedade já conturbada e patinando.
Os próximos anos serão decisivos no que diz respeito ao status da França no mundo, mas possivelmente ele diminuirá, levando junto a própria disposição da burguesia francesa em “distribuir renda” em um cenário de recursos escassos. Isso elevará a luta de classes a um patamar impensável. O ocaso de Macron é só uma nota de rodapé desse processo, que coloca os franceses em companhia de seus piores fantasmas. Mas manda recados ao Brasil.
(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária.