Nos últimos dias, em sua demorada visita pelo Brasil, Emmanuel Macron se mantinha sob os olhares e flashes da imprensa e das redes sociais, fazendo questão de soltar frases de efeito e fazer gestos midiáticos. Enquanto isso, novas más notícias vinham da África, com a vitória eleitoral da esquerda no Senegal, o que se une à onda de levantes militares nacionalistas no continente – todos críticos à presença francesa .
Sob o véu da diplomacia verde e sustentável com Lula, acordos sobre exploração e comércio de urânio entre Brasil e França foram realizados. Em paralelo, grande parte das recentes declarações de efeito de Macron sobre o envio de “tropas terrestres” à Ucrânia retaliam as ações russas de apoio a movimentos de autonomia nacional na África Ocidental, uma fonte até então barata e segura do urânio necessário às centrais nucleares francesas.
Há dois anos, os franceses se colocavam em uma posição de mediação pouco interessada do conflito russo-ucraniano: os riscos de uma escalada na Ucrânia eram tratados com menosprezo, uma vez que a França produz 65% de sua energia elétrica por meio de suas centrais nucleares – ainda, o eventual choque na Europa Oriental enfraqueceria a indústria alemã, dependente da energia barata e segura vinda da Rússia.
O problema da estratégia de Paris para Kiev em 2022, contudo, é que a França não minera mais sequer um quilo de urânio, a matéria-prima necessária para o funcionamento de suas instalações nucleares. A França obtém urânio do Níger, em condições aviltantes para os africanos, em uma reprodução do Françafrique, a política de influência de Paris sobre suas ex-colônias na África, o que as mantém brutalmente subdesenvolvidas.
A primavera de levantes africanos
Na esteira dos últimos anos, 2023 testemunhou uma série de rebeliões militares na África, seja em democracias tênues como o Níger ou em ditaduras amigas do Ocidente como o Gabão – este na África Central, de onde os franceses extraíram o urânio necessário para sua primeira detonação nuclear –, assim como o fortalecimento dos regimes nacionalistas do Burkina Faso e do Mali. Agora, venceu a esquerda nacionalista no Senegal.
O Níger é o que mais afeta a França, uma vez que o país africano é atualmente o 7º produtor de urânio do mundo – e seu principal fornecedor. De um lado, elites nacionalistas nigerinas queriam se livrar de condições comerciais ruins, com apoio popular, enquanto seus aliados russos queriam bloquear a construção do gasoduto transaariano, que ligaria a vizinha Nigéria à Europa, passando pelo Níger, dando assim um respiro à Alemanha e outros países europeus.
Sem estabilidade no Níger, fatalmente, a construção de um gasoduto de milhares de quilômetros não poderia chegar ao mar Mediterrâneo, como gostaria Washington e necessitava Berlim. A questão é que, além disso, o giro de posição do Níger pode significar o colapso de relações altamente desiguais com sua ex-metrópole, a França – que inclusive controla a moeda de suas ex-colônias na África Ocidental.
O presidente russo, Vladimir Putin, já há anos tem posicionado tropas táticas na África, reacendendo a disputa dos tempos soviéticos contra os ocidentais. Anteriormente, eram as tropas privadas do Grupo Wagner, hoje remodeladas como Africa Corps, a agir no continente, servindo como um anteparo experiente aos exércitos regulares locais – gerando assim um temor de que qualquer intervenção nesses países seria entrar em uma armadilha.
Em razão disso, a indiferença francesa com o conflito ucraniano terminou, uma vez que sua tranquilidade movida à energia nuclear foi atingida. Macron reagiu rufando os tambores de guerra contra os russos, fustigando tanto o terreno ucraniano propriamente dito quanto o Cáucaso – em uma suposta jornada de solidariedade à Armênia, a qual é assediada pelo Azerbaijão com apoio da Turquia.
O fantasma da Argélia
A grande questão para a França é que se os novos governos militares avançarem, isso pode pôr fim a uma fonte quase infinita de recursos africanos. Paris controla da extração de minérios e até a estrutura monetária dessa banda do mundo – o Franco CFA, nome da moeda colonial francesa, ainda é a moeda da ex-colônias, apenas com a sigla cinicamente alterada de “Colônias Francesas da África” para “Comunidade Financeira Africana”.
Nesse cenário, Macron teria de despachar tropas para o continente africano ou achar um meio não parasitário de funcionar, o que é praticamente impossível no curto prazo. O pesadelo estratégico da Guerra da Argélia (1954-1962), cuja derrota gerou ecos profundos à França, assombram o presidente francês – isto é, um risco de conflito no qual, mesmo promovendo uma guerra suja, a França pode ser derrotada.
As chances da França vencer na África passariam por jogar de forma brutal, o que não só poderia ter efeitos desastrosos na imagem do país como, ainda, levar a uma reação de árabes e muçulmanos – inclusive na França, cuja participação na classe trabalhadora local não é irrelevante. O arranjo da Quinta República estaria em risco, porque o próprio status da França como país rico termina em questão.
A resposta francesa de “atacar na fonte” e atingir a Rússia, no entanto, deveria dar calafrios em qualquer francês: trazer a guerra para a Europa nunca foi alvissareiro. Recentemente, o ex-ministro das Relações Exteriores da França durante a presidência de Jacques Chirac, o eloquente Dominique de Villepin, expôs, em rede nacional, a tragédia – e a desinteligência – que isso representaria.
Sobre tragédias e farsas
No quartel final do século 20, a França conseguiu estancar “o pesadelo” das independências de suas então colônias africanas, das quais arrancava vastos recursos materiais, e, assim, o sonho africano de autonomia nacional foi postergado. Hoje, essa realidade tem mudado de variadas formas. “Perder” o Senegal tornou a intervenção militar no continente ainda mais remota, o que facilita medidas mais ousadas por parte do Níger, Mali e Burkina Faso.
Nesse sentido, o tour midiático de Macron, com suas juras de amor a Lula e promessas de luta por sustentabilidade ambiental, escondem as negociações para ampliar a mineração de urânio no Brasil, conforme negociado pelo deputado Júlio Lopes (PP-RJ) – o que traria, em tese, um intercâmbio tecnológico com o nosso país na área militar. É claro, não é só isso: a França depende do Brasil em vários sentidos, na medida que perde terreno.
Cada vez mais longe da África e em meio a uma Europa em declínio, a França precisa fazer circular capitais onde é, em tese, bem-vinda – mas Macron também se perfila ao lado de Lula contra o inimigo comum da extrema direita, que no caso francês lidera as pesquisas para as eleições do parlamento europeu do meio deste ano. A radical de direita Marine Le Pen aparece, igualmente, fortíssima nas sondagens para as eleições presidenciais, ainda remotas, de 2027.
Ironias do destino, apesar da aproximação de Macron com Lula, há uma divergência em relação ao Acordo Mercosul-União Europeia, no que, paradoxalmente, o líder francês coincide com as bases de apoio históricas do presidente brasileiro, como os metalúrgicos ou o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) – que protestam contra ameaças ao emprego industrial e riscos de expansão de mineração que o acordo traz em si.
Macron, por sua vez, se defende de pressões populares que entendem, com alguma razão, que o acordo pode ferir de morte a agricultura francesa. Também se percebe em Paris que, em vez de acordos bilaterais vantajosos com o Brasil ou Argentina, uma negociação em bloco de toda a Europa favorece a Alemanha. Em síntese, aqui também se manifesta a competição franco-alemã, uma quase guerra fria que é frequentemente subestimada.
A busca brasileira pela realização do Acordo Mercosul-União Europeia se funda em uma posição fechada e sacralizada pela elite brasileira, sobretudo pelo agronegócio, junto com a Alemanha – inclusive por setores sindicais, vide a ação do governo alemão, liderado pela social-democracia, pelo acordo. Sem Macron, contudo, não há acordo e isso, ironicamente, desobriga Lula de uma negociação que ele se auto-obrigou a realizar, apesar do alto custo.
A desesperada agenda internacional de Macron é uma luta, no fio da navalha, pela sua sobrevivência e de seu movimento político, o que hoje se confunde com a própria sobrevida da Quinta República da França – que já dura desde os fins dos anos 1950 e é cada vez mais rejeitada à direita e à esquerda. O sucesso da agenda internacional de Macron, contudo, é uma enorme interrogação que se conecta ao cada vez mais incerto futuro europeu.
(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária.