Nos dias atuais, onde o terror do Daech (prefiro este nome ao de “Estado Islâmico”, que ele não é) domina o noticiário, é muito útil a releitura do livro Em nome de Deus, escrito pela ex-freira católica britânica e renomada historiadora da religião Karen Armstrong. Nele a autora busca levantar as origens do fundamentalismo nas três principais religiões monoteístas: cristianismo, judaísmo e islamismo. Lá encontraremos as fontes que impulsionam o terrorismo de vertente religiosa.
O Daech tem a Síria como o campo de batalha final entre o Islã e seus inimigos. Esta ideologia do Apocalipse está fortemente presente no pensamento islâmico clássico. Como o cristianismo, o islamismo nasceu de um movimento messiânico que pregava a iminência do Juízo Final. Os primeiros capítulos do Alcorão contem previsões apocalípticas semelhantes às dos relatos bíblicos. O Dajjal, um messias impostor de um olho só, equivalente do Anticristo do Novo Testamento, é figura central desta tradição. Com pequenas variações, a maioria das versões prevê que a luta final terá lugar em Damasco quando Jesus, como um Messias islâmico, retornará, matará os porcos, destruirá o Dajjal e, finalmente, romperá a cruz como símbolo de sua conversão.
Reprodução de vídeo da Vice News
Militantes do Estado Islâmico, ou Daech, em vídeo da Vice News
Nas mentes jihadistas, todos os sinais desse apocalipse estão ocorrendo agora no Oriente Médio. O Daech intitulou sua revista online como Dabiq, em referência a uma pequena cidade da Síria, perto da fronteira com a Turquia. Muitos hadith, crônicas dos feitos e gestos do Profeta, associam essa cidade a uma batalha de Armageddon islâmica, quando os muçulmanos viriam de Medina e venceriam os “romanos” (termo aplicado ao Império Bizantino).
As semelhanças entre essa ideologia e as crenças dos cristãos fundamentalistas provem de mitos primevos do Oriente Próximo. Há, porém, uma corrente messiânica do Islã que prega a restauração do Califado, para a qual há equivalente cristão. Esse Califado seria o verdadeiro “Estado Islâmico”, governado pela lei da Sharia e por um Califa sucessor do Profeta. Esse Califa concentraria tanto o poder político como o religioso. A ideia de que um Califa aparecerá com a bênção de Deus está intimamente associada à batalha final contra o mal.
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Exceto nos primeiros dias do Islã e num breve período de início da Idade Média, o Califado é uma instituição que nunca existiu efetivamente. No entanto, ele fornece um modelo de governo muçulmano poderoso, baseado em fundamentos morais, jurídicos, políticos, sociais e metafísicos muito diferentes daqueles em que o Estado moderno repousa.
No século XIX, os sultões otomanos renovaram a ideia do Califado, em resposta aos direitos que os czares russos e os Habsburgos austríacos julgavam ter sobre os cristãos que viviam em terras otomanas. Se o czar tinha direitos para os cristãos do Oriente Médio e dos Balcãs, o sultão-califa poderia reivindicar os mesmos direitos sobre os muçulmanos que viviam em terras cristãs.
A Primeira Guerra Mundial e as revoluções russa e turca, entretanto, sepultaram essa ideia. Ataturk aboliu o Califado em 1924, encontrando pouca ou mesmo nenhuma resistência. Ao mesmo tempo, os estados europeus dividiram entre si os territórios otomanos, pondo fim a um império muçulmano transnacional de cinco séculos. Foi justamente esse desmembramento que o Daech condenou abertamente no momento da mediatizada remoção da fronteira entre Iraque e Síria, em 2014.
Enraizado numa cultura apocalíptica que lhe dá significado e propósito especial, a ideia de um Islã transnacional, regido pelo Califado, parece encontrar um eco forte entre jovens em conflito de identidade. Como o historiador britânico Norman Cohn aponta em seu estudo pioneiro sobre o milenarismo (“Os fanáticos do Apocalipse”), desde sempre os movimentos apocalípticos liderados por um líder carismático seduzem aqueles que se sentem excluídos da sociedade ou que estão à procura de um novo sentido às suas vidas.
Sem dúvida esse é o caso de muitos dos sunitas discriminados e perseguidos pelo governo xiita de Nouri al-Maliki após a retirada dos americanos do Iraque, bem como dos jovens europeus, em especial daqueles descendentes de imigrantes muçulmanos, severamente atingidos pelo desemprego e falta de perspectivas de integração na sociedade afluente dos países desenvolvidos onde nasceram.