O litoral central chileno sempre foi o destino turístico preferido pelos argentinos que residem nas províncias ocidentais do país, sobretudo os de Mendoza. Porém, há pouco mais de dois anos, esse fluxo tem aumentado significativamente e a razão desse fenômeno parece estar longe das atrações turísticas tradicionais.
Desde 2010, tem crescido o número de argentinos que cruza a Cordilheira dos Andes em busca de eletrodomésticos, roupas e outros diversos tipos de artigos importados, muito mais caros e escassos nas prateleiras das lojas argentinas devido às medidas protecionistas adotadas pelo governo local.
Segundo números do Serviço Nacional Aduaneiro do Chile, só na última Semana Santa foram registrados mais de 25 mil veículos argentinos circulando pela zona central chilena através do Passo Fronteiriço Los Libertadores (o mais próximo da capital Santiago) – cifra ainda mais eloquente se comparada com os pouco mais de 14 mil contabilizados no mesmo feriado em 2011.
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A tendência não parece estar restrita a feriados prolongados. Mesmo em finais de semana comuns, a quantidade de argentinos na região metropolitana de Santiago e, principalmente, na província de Valparaíso, onde estão a cidade balneária de Viña del Mar e o pequeno município de Los Andes (cidade chilena mais próxima à Mendoza), também é vista como um fenômeno pelos comerciantes locais.
Um casal argentino que conversou com a reportagem do Opera Mundi explicou a razão pela qual tem visitado mais frequentemente o país vizinho: “Viña del Mar sempre foi o destino preferido da família, e ultimamente temos vindo para cá com maior frequência, em parte porque a nossa situação econômica nos permite vir mais vezes, e também porque nos convêm comprar aqui”, explicou a senhora, que não quis ter sua identidade revelada. Seu marido, um pequeno empresário de Mendoza, contou que, em um fim de semana de 2011, chegaram a comprar uma TV de plasma, um aparelho de som e outro de DVD, e assegurou que “os preços, chegam a ser até dois terços menores do que os cobrados nas lojas em Mendoza”.
Tendências cíclicas
Roberto Torrejón é gerente de vendas da principal filial de Viña del Mar de uma importante rede de lojas de departamentos, e diz atender cinco ou seis clientes do país vizinho por fim de semana. “[Eles] costumam aparecer entre sexta e domingo, sempre muito dispostos a comprar. Mais até que os chilenos”, comentou de forma bem humorada.
O chileno destaca, como característica mais marcante dos seus clientes argentinos, o fato de que quase sempre pagam com dinheiro e alguns ainda perguntam se aceitam pagamento em dólares. A relação entre o dólar e as moedas chilena e argentina é uma das principais explicações para o fenômeno que acontece hoje no Chile. O governo do país, desde a chegada do atual presidente Sebastián Piñera, tem adotado medidas econômicas que mantêm o dólar numa cotação baixa, favorecendo os importadores transandinos, já que o mesmo não acontece no país liderado por Cristina Kirchner.
A reportagem do Opera Mundi procurou diversas casas de câmbio nas cidades de Viña del Mar e Valparaíso, e todas coincidiram que o número de clientes argentinos nos finais de semana é realmente grande, muitos costumam comprar pesos chilenos com dólares e não com pesos argentinos. Alguns donos de casas de câmbio que têm contato com colegas argentinos dizem que em Mendoza tornou-se comum uma operação chamada “câmbio repartido”, que consiste em receber um montante em pesos argentinos e dividir o câmbio, parte em pesos chilenos, parte em dólares (normalmente metade e metade), sendo que essa parte em dólares é depois trocada por pesos chilenos uma vez cruzada a cordilheira – algo que os mesmos entrevistados disseram ser semelhante ao que faziam os chilenos quando o preço do dólar favorecia a moeda argentina. Entre as casas chilenas, o valor máximo das operações nunca é superior a três mil dólares.
Para o cônsul da Argentina em Valparaíso, Alejandro Lamarque, o aumento do número de argentinos que visitam o Chile para comprar roupas e eletrodomésticos é uma tendência cíclica, que não estaria diretamente ligada às restrições impostas pelo governo de seu país a alguns produtos importados, visando beneficiar a indústria nacional. “São tendências que têm maior relação com o fator cambial, que hoje favorece a moeda chilena. Antes favorecia o peso argentino, e eram os chilenos que iam a Mendoza”, analisa Lamarque.
Torrejón, que havia interrompido a entrevista para atender um casal argentino que pesquisava preços de geladeiras, confirma parte da teoria do cônsul: “Entre 2006 e 2008, era muito conveniente ir a Mendoza comprar produtos, principalmente peças de automóveis e roupas, eu mesmo fazia uma visitinha quando era necessário”. Uma viagem de carro entre Mendoza e Viña del Mar, na província de Valparaíso, dura cerca de sete horas (entre Mendoza e Santiago dura cinco horas).
O boom argentino em Los Andes
Outro indício dessa nova tendência é que os destinos litorâneos, ainda os mais buscados, já estão tendo que compartilhar essa hegemonia com a pequena cidade de Los Andes (87 km a nordeste da capital chilena), onde o oportunismo das grandes lojas de departamento e dos pouco mais de 90 mil habitantes do município tem adaptado o comércio local às exigências desse novo tipo de cliente.
Angélica Menares, administradora do Restaurante Opus, no centro da cidade, relata que o fenômeno começou a se verificar desde 2010, embora seja muito mais intenso este ano, e se repete em todos os fins de semana, inclusive durante o inverno, mas com especial incremento durante os fins de semana prolongados. “Nos feriados, você encontra argentinos em qualquer lugar, nas praças, nas lojas de roupas ou de eletrodomésticos, ou vê caminhonetes passando com a caçamba cheia de produtos recém-comprados”, explica.
Ela admite que o restaurante onde trabalha também realizou mudanças para tentar atrair essa nova clientela: “Incluímos no cardápio algumas opções típicas deles, como a morcela e diferentes tipos de milanesa, apesar de que eles também gostam de experimentar a comida típica chilena, mas é sempre bom ter o básico disponível”.
Historicamente, a cidade era conhecida por ser parada obrigatória para muitos caminhoneiros recém-chegados ao país, ou pelas atividades em torno das minas de cobre espalhadas ao redor da região.
Apesar de a nova tendência ter aproximadamente dois anos, foi tempo suficiente para impulsionar a abertura de diversos novos negócios, um shopping center, filiais das principais lojas de departamentos do país e até um cassino.
A jovem Rocío del Solar trabalha como vendedora em uma das lojas de roupas do shopping center e reclama um pouco da briga para ser escalada para trabalhar nos fins de semana, já que “os argentinos, além de serem muitos, são compradores mais seguros, não vêm só para consultar preço, muitos pagam com dinheiro, e sempre à vista, o que rende melhores comissões”.