Durante mais de quatro anos, o major-general Paul Brereton investigou acusações de que elementos dos Serviços Aéreos Especiais de elite e regimentos de comandos mataram e brutalizaram civis afegãos. No documento agora divulgado, citado pelo The Guardian, assinala-se que as forças especiais foram responsáveis por dezenas de mortes ilegais, a grande maioria das quais envolveram prisioneiros, que estariam protegidos pelo direito internacional. Os 23 incidentes, que vitimaram 39 afegãos, foram deliberadamente encobertos. Nenhuma das mortes ocorreu no calor da batalha e todas se enquadram na tipificação de crime de guerra de homicídio. Todas as vítimas eram não combatentes ou já não eram combatentes. Foram identificados 25 responsáveis, alguns dos quais se mantêm ao serviço.
Brereton explicou que iniciaram este inquérito “com a esperança de poder relatar que os rumores de crimes de guerra eram infundados. Nenhum de nós desejava o resultado a que chegámos”. O major-general descreve as ações das forças especiais como “vergonhosas e uma traição profunda” da Força de Defesa Australiana.
O inquérito foi desencadeado pelo trabalho da socióloga militar Samantha Crompvoets, incumbida de examinar a cultura das forças especiais. Crompvoets recolheu testemunhos perturbadores de crimes de guerra, como o que respeita a um incidente em que dois meninos de 14 anos foram mandados parar e considerados simpatizantes dos talibãs. Os soldados cortou as gargantas dos rapazes.
“O resto da tropa então teve de “limpar a confusão” encontrando outras pessoas para ajudar a eliminar os corpos”, relatou Crompvoets. “No final, os corpos foram ensacados e jogados num rio próximo”, disse.
Perante as evidências descritas no relatório de Brereton, o chefe das Forças de Defesa australianas emitiu um pedido de desculpas: “Ao povo do Afeganistão, em nome das Forças de Defesa da Austrália, aqui fica um pedido de desculpas sincero e sem reservas pelos erros cometidos pelos soldados australianos.
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Forças especiais foram responsáveis por dezenas de mortes ilegais, a grande maioria das quais envolveram prisioneiros
Neste contexto, algumas patrulhas agiram fora dos parâmetros da lei. Regras foram quebradas, histórias inventadas, mentiras, e prisioneiros foram mortos”, afirmou Angus Campbell, comandante das Forças de Defesa australianas.
Angus Campbell comprometeu-se ainda a agir sobre as conclusões “vergonhosas”, “profundamente perturbadoras” e “terríveis” do relatório Brereton sobre a conduta das forças especiais australianas.
O atual primeiro-ministro, Scott Morrison, bem como o ex-primeiro-ministro Kevin Rudd e a ministra dos Negócios Estrangeiros, Marise Payne, lamentaram os acontecimentos e apresentaram um pedido de desculpa. O governador-geral da Austrália, David Hurley, ex-chefe da Força de Defesa durante o período, apresentou condolências às famílias das vítimas afegãs e descreveu as acusações como “atrocidades imperdoáveis” cometidas por “um pequeno número de indivíduos e deliberadamente ocultadas de cadeias imediatas de comando”.
Um relatório conduzido pelo inspetor-geral da Força de Defesa Australiana (IGADF) já referia que denúncias de locais e de grupos de direitos humanos tinham sido descartadas como “propaganda dos talibãs”. “É claro que havia sinais de alerta por aí, mas nada aconteceu”, escreveu David Wetham, o assistente do IGADF.
Várias reportagens divulgadas pela imprensa também já tinham denunciado situações de abuso, bem como já tinham sido levantadas suspeitas sobre a conduta dos soldados em relatórios internos das forças de defesa. Em 2016, um documento citado pelo Sydney Morning Herald e The Age sobre a cultura das forças especiais revelou que os soldados eram motivados pela “sede de sangue” durante a tortura e execução de prisioneiros afegãos.
Patricia Gossman, investigadora sênior da Human Rights Watch no Afeganistão, exortou as nações cujos militares serviram como parte da coligação liderada pelos EUA no Afeganistão, incluindo os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, a seguir o exemplo da Austrália e a analisar a conduta de seus próprios soldados. “Era parte de uma cultura doentia que essencialmente tratava os afegãos que viviam nessas áreas contestadas como se todos fossem criminosos perigosos – até mesmo as crianças – ou simplesmente como não humanos”, afirmou.