Sobre a terra vermelha e árida, as casas simples e sujas, várias delas com janelas e portas quebradas, lembram uma cidade fantasma, por onde cobras e ratos passeiam livremente durante a noite. Wadeye, 2,5 mil habitantes, situada na costa norte da Austrália, é uma das maiores comunidades nativas do país, distante 3 mil quilômetros da capital, Canberra.
Wadeye também é um símbolo da dificuldade que o governo australiano vem enfrentando para eliminar – ou ao menos reduzir – as mazelas sociais dos seus aborígenes. Os relatórios governamentais mais recentes mostram que eles continuam condenados a uma vida de terceiro mundo dentro de uma nação de primeiro.
Crianças em Tiwi Islands
Quem entra na cidade logo percebe o que isso significa, a julgar pelos moradores maltrapilhos, descansando debaixo das árvores ou caminhando a esmo pelas ruas quase vazias. “Não há muito o que fazer aqui”, diz Mark Hoy, dono do único supermercado local. Por perto, crianças brincam descalças durante o horário escolar.
Escolaridade baixa
Há dois anos, Canberra tentou erguer o moral e as condições materiais de existência desses povos. Gastou 558 milhões de dólares em 83 comunidades do chamado Território do Norte, onde vivem cerca de 60 mil aborígenes. Mas nem em Wadeye nem em outros assentamentos visitados pelo Opera Mundi se veem sinais de melhora. Faltam moradias decentes e não há sinal de atividade econômica gerada pela pensão mensal distribuída às familias em troca de elas manterem as crianças na escola (a exemplo do Bolsa Família, no Brasil).
O mais recente relatório oficial confirma essa impressão. Revela, por exemplo, que o abuso sexual infantil é seis vezes maior entre os aborígenes do que entre não-aborígenes. Os índices de homicídio são sete vezes maiores e eles vão para a cadeia 13 vezes mais. Ao mesmo tempo, o programa pode ter criado novas dificuldades ao tentar resolver problemas como o alcoolismo crônico e a violência.
Aborígenes em Wadeyne
Ampliou-se assim a presença da polícia nas comunidades aborígenes. Além do álcool, a pornografia também foi proibida. Para receber a pensão, a família se compromete a gastar metade do dinheiro em alimentos essenciais, comprados no supermercado local.
Mas o nível de escolaridade, que já era baixo, não melhorou. Segundo o relatório, apenas 36% dos jovens de até 19 anos terminam o segundo grau.
Racismo
Segundo moradores de Wadeye, a iniciativa governamental criou 1,7 mil empregos temporários na região, na área de educação, artes e creches. Mas os aborígenes continuam a ser a minoria mais pobre do país, a que tem mais problemas de saúde e menos oportunidade de ascensão social. A média de vida é 17 anos inferior à dos demais australianos (os nativos representam 2% da população, de 22 milhões).
Os aborígenes têm uma visão crítica da intervenção. Muitos rejeitam o que consideram um tratamento diferenciado em relação aos brancos. “Quero ter liberdade de decidir o que fazer com meu dinheiro. O supermercado é caro”, reclamou uma moradora. Além disso, segundo alguns, há discriminação econômica: tanto o dono do supermercado como o açougueiro, por exemplo, são brancos. Ou seja, as propriedades e os empregos geralmente não estariam ao alcance dos aborígenes.
William Parmbuk, um dos chefes comunitários de Wadeye, diz que em muitos vilarejos os brancos podem consumir álcool em casa, e os aborígenes não. “A disparidade é racista. Ninguém deveria beber aqui”, opina ele, acrescentando que gostaria que o governo escutasse mais os nativos.
Amontoados
Residente antigo de Wadeye – uma das maiores comunidades nativas da
Austrália –, Harold Anderson conta que os problemas dos
aborígenes vêm de muito tempo. Para ele, a violência doméstica e o
vandalismo não são apenas consequência da bebida, e sim de
desequilíbrios sociais acumulados desde a década de 1930, quando
missionários amontoaram num mesmo lugar cidadãos de diferentes tribos e
clãs. “Por isso falamos sete línguas diferentes em Wadeye, apesar de
sermos apenas 2,5 mil habitantes”.
Wilfred Nawirridj, da aldeia vizinha de Oenpelli, que trabalha
ocasionalmente como guia turístico, contou ao Opera Mundi que atribui
os atuais problemas aborígenes à chegada dos europeus. “Eles começaram.
Não tínhamos problemas com álcool nem drogas nessa região”.
Foi
essa realidade histórica que levou o governo, primeiro, a decretar a
questão aborígene como uma emergência nacional e, segundo, a iniciar a
intervenção. O país, naquela época, estava chocado com casos como o de
uma jovem de 18 anos que, em 2007, teria afogado uma criança de seis
anos. Também houve epidemias de suicídio em algumas comunidades.
Geração roubada
Durante
muito tempo, entre 1870 e 1970, o país forçou a remoção de crianças
aborígenes de suas famílias, criando o que é conhecido hoje como a
“geração roubada”. Para o governo, a intenção, na época, era proteger
as crianças do abuso e da rejeição. Os críticos, porém, alegam que, na
maioria dos casos, elas eram levadas sem evidência de maus-tratos e
acabavam em famílias adotivas ou orfanatos.
Anderson conta
que ele mesmo foi separado da mãe e da irmã quando tinha 11 anos, e só
voltou a vê-las depois de décadas. “Eles simplesmente chegavam e nos
arrancavam de nossas famílias para crescermos como brancos”.
São poucos os dados fornecidos pelo governo. A ministra
de assuntos indígenas, Alison Anderson – ela mesma aborígene –, diz
apenas que “sabemos que mulheres continuam a apanhar e que crianças
continuam sendo abusadas”. Mas, segundo ela, seu povo está acostumado a
viver de pensão, ou em situações precárias, em que até 30 pessoas se
abrigam sob o mesmo teto. “Uma nova casa ou trabalho não vai mudar a
forma de eles viverem”.
*Texto e fotos
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