Cumprimentar Serge Nzembele é uma tarefa complexa, com risco de torcicolo. O jovem congolês tem 2,10 metros. Não por acaso, quer jogar num time de basquete, de preferência o Vasco, onde lhe disseram que teria mais chance de conseguir um lugar. Se não der certo, pretende participar de programas de televisão para gigantes.
No Brasil há apenas cinco meses, já aprendeu a se virar em português, mas ainda prefere falar francês e, claro, lingala, o dialeto mais corrente na República Democrática do Congo (RDC). O jovem com corpo musculoso não gosta de lembrar os últimos meses no seu país. Ele conta que formava parte dos seguidores de Jean-Pierre Bemba, quando este perdeu a eleição presidencial para Joseph Kabila, em 2006. As tensões não demoraram a voltar entre os dois homens, provocando batalhas entre seus partidários. Em 2007, Bemba resolveu fugir para Portugal.
“Para os que ficaram atrás, como eu, a situação era muito perigosa, éramos perseguidos, perdi três amigos assim”, conta Serge. “Meu pai arranjou um passaporte diplomático para mim, com um visto para o Brasil, e aqui estou, com meus irmãos congoleses”, acrescenta.
Os “irmãos” são Alain Disasi, Thierry Lobe, Giorgio Manga e Billy Bahati, todos refugiados políticos no Brasil ou aguardando ainda o documento. O ponto de encontro é a sede da ONG Caritas, perto do Maracanã. Aqui, o grupo de assistentes sociais e voluntários oferece ajuda para os trâmites administrativos, especialmente para obter o título de refugiado, aulas de português e uma breve capacitação.
No Brasil, a Caritas é a principal ONG que colabora com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), uma agência da ONU criada em 1950 com o objetivo de proteger e assistir as vítimas de perseguição, intolerância e violência. O organismo trabalha em parceira com o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), ligado ao Ministério da Justiça, e também com o setor privado e ONGs.
A lei que contém o estatuto do refugiado foi votada em 1997. “O Brasil tinha mais fama de produzir refugiados políticos que de acolhê-los”, diz Luiz Fernando Godinho Santos, porta-voz do Acnur, em referência aos militantes que fugiram da ditadura nos anos 70. Segundo o texto, é reconhecido como refugiado “todo indivíduo que, por fundado temor de perseguição por motivo de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, encontre-se fora de seu país de nacionalidade ou residência habitual e não possa ou não queira acolher-se à proteção do referido país”.
O caso recente do italiano Cesare Battisti – cujo futuro está ainda por ser definido pelo Supremo Tribunal Federal – alimentou centenas de páginas na imprensa brasileira, escondendo uma realidade mais discreta: o Brasil acolhe cada vez mais refugiados políticos. Há cerca de 4 mil no Brasil. É pouco comparado com a população do país, “mas é um movimento recente, e bem original”, explica Godinho.
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Mais de 70% vêm da África
A particularidade do Brasil é a diversidade de origens. O Acnur calcula que 72 nacionalidades são presentes: palestinos, iraquianos, colombianos, georgianos, angolanos, congoleses. Hoje, mais de 70% dos refugiados vêm da África. “No começo, vieram os angolanos, aproveitando o idioma comum. As últimas ondas, porém, vêm da RDC”, informa Godinho. Tradicionalmente mais aberto que as nações européias, o Brasil ganhou ultimamente uma imagem mais atrativa. “Eu sentia que era um país que se movia e se desenvolvia, muito mais dinâmico que a Europa”, conta Serge.
Tampouco foi uma escolha muito organizada para todos. “Um refugiado não escolhe, ele vai onde puder”, afirma Godinho. No caso de Thierry, a chegada ao Brasil foi um acidente. “Estava fugindo. Vi um navio, achei que ia para os Estados Unidos ou para o Canadá. Subi como clandestino. Quando a gente já estava longe da costa, me descobriram”, conta o congolês, com voz cansada. “O capitão estava furioso. Além disso, disse que não ia para o norte, mas para a cidade de Santos, no Brasil. Nunca ouvi falar, fiquei desanimado”, lembra Thierry. Na chegada ao porto santista, o capitão, solidário, lhe deu 200 dólares. “Foi assim que comecei a me virar”.
O Brasil foi uma surpresa, às vezes boa, outras desagradável. “Cheguei com medo, todo mundo falava da violência nesse país, descobri que era um absurdo”, conta rindo Serge, que mora na favela Braz de Pina, como a maioria dos congoleses do Rio de Janeiro. Todos ficaram impressionados pela gentileza dos cariocas. “Eles ajudam, dividem a comida com a gente. Na academia, todo mundo é muito atencioso, apesar do português ruim”, conta Alain, que aos 39 anos, faz parte dos veteranos.
Comparados com os países desenvolvidos que acolhem refugiados, o Brasil é uma terra de adaptação mais fácil. “O fato de ser uma nação multiétnica simplifica a integração deles na sociedade. Em outras regiões, eles são discriminados”, acredita Godinho. “No Rio, caminhamos na rua tranquilos, a situação é bem diferente em São Paulo: nossos amigos lá são sempre molestados pela policia”, diz Thierry.
Para os congoleses, os negros brasileiros sofrem de um “complexo de inferioridade”.“Pelo nosso jeito de caminhar, eles sabem que não somos daqui, eles acham que a gente vem dos Estados Unidos. E os policiais negros são bem mais agressivos que os brancos. Acho que ser negro aqui é uma coisa complicada”, avalia Serge, com a aprovação de seus companheiros.
A relação com as mulheres é mais complicada do que eles esperavam. “As meninas de 17 a 25 anos são muito materialistas”, queixa-se o jovem Billy, tocando o maior problema enfrentado pelos refugiados: a escassez de recursos financeiros. Uma vez que o título de refugiado é aprovado pelo Conare, eles recebem 300 reais por mês do Acnur, via a ONG Caritas. A ajuda dura seis meses. “É verdade que é muito pouco: com este dinheiro, eles devem se vestir, se calçar, comer e arranjar um lugar para viver. Até na favela, não é tão barato assim”, alega Heloisa Santos Nunes, coordenadora da Caritas no Rio de Janeiro.
“Não dá para comprar nada aqui. Comer tudo bem, tem restaurante populares, mas comprar um jeans já é coisa impossível”, diz Billy. Para eles, no entanto, o problema maior não é a quantia de dinheiro que obtêm, que até dá para sobreviver, mas a duração: depois de seis meses, eles ficam sem nada. “Não tenho casa, não tenho nada para comer, passei sete meses dormindo na rua, até que um companheiro congolês me ofereceu hospedagem”, lembra Alain.
Prudente e as duas filhas: virando praticamente brasileiras
Um emprego, por favor!
Giorgio, 20 anos, é o único do grupo que insiste para falar em português, aprendido nos últimos dois anos. Antes de chegar ao Brasil, ele transitou pela Argentina, que deixou por conta do racismo contra os negros, raros no país. “Você tem que explicar para o pessoal de Brasília que não dá para viver assim. Eles têm que dar um trabalho para a gente antes de cortar a ajuda, senão alguns vão acabar fazendo coisas ruins, só para comer”, afirma, em referência ao narcotráfico presente nas favelas cariocas.
Para Godinho, do Acnur, as queixas são excessivas. Ele lembra que o organismo da ONU vive essencialmente de doações de países, que são cada vez mais baixas por causa da crise. Em compensação, o número de pessoas obrigadas a deixar seus países, perseguidas por guerras, massacres ou pelas opiniões políticas, está aumentando.
Atualmente, mais de 30 milhões de pessoas no mundo estão sob responsabilidade do Acnur, entre solicitantes de refúgio, refugiados, apátridas, deslocados internos e repatriados. “A ajuda que damos não é um programa assistencialista, eles têm que aprender a ser autônomos”, argumenta o porta-voz.
Encontrar um trabalho não é fácil. “Pelo menos aqui não tem preconceito contra refugiados, mas eles não falam ainda muito bem [o idioma], e são pouco qualificados”, explica Heloisa, com uma adolescente, filha de refugiada, no colo. A assistente social, muito querida pela comunidade que acolhe, rejeita a idéia de que eles não querem trabalhar: “Não são vagabundos”.
Os jovens congoleses estão revoltados pelos baixos salários no país. Muitos deles se consideravam como parte de uma pequena elite na RDC. “Aqui, os únicos empregos que encontrei são de pedreiro, ou limpador de janelas em prédios altíssimos: é uma tarefa perigosa e, no final do dia, ganho 20 reais. Não dá”, desabafa Giorgio.
Apesar das dificuldades, a maioria dos refugiados já faz parte da sociedade. Eles se beneficiam das políticas públicas nacionais. O Executivo está trabalhando numa proposta que lhes daria acesso ao Bolsa Família, o programa destinado às famílias mais pobres do país. O governo federal também montou um serviço específico para atender os refugiados no Hospital dos Servidores do Estado, no centro do Rio, uma experiência única na América Latina que, segundo Godinho, demonstra a vontade política do Brasil de ter um papel mais ativo no acolhimento de refugiados.
“Quanto mais jovens, mais se adaptam”, sublinha o porta-voz do Acnur. No pátio da Caritas, no Rio de Janeiro, basta ver Cathy, uma menina de 7 anos, para entender o que ele quer dizer. “Chegamos aqui em janeiro de 2008 e já não consigo mais falar com ela em francês ou em nosso dialeto, ela aceita só o português”, conta a mãe, Prudente Carambar, uma linda congolesa de 29 anos. “E nem te falo da Rosete, que ainda vai completar um ano: ela nasceu aqui, é uma pequena brasileira”, conclui com um sorriso.
Texto e fotos: Lamia Oualalou
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