Um dos países mais militarizados da América Latina, a Colômbia implementou uma mudança importante em sua política de defesa. O presidente Juan Manuel Santos sancionou nos últimos dias de 2014 uma lei que põe fim à exigência da livreta militar para a emissão de diploma de curso superior no país. A medida aprovada responde às demandas de uma série de coletivos antimilitaristas — criados pelos chamados objetores de consciência —, que vinham questionando há anos o recrutamento forçado e a necessidade de apresentar o certificado militar em universidades e no funcionalismo público.
“Fomos pegos de surpresa com a notícia. Em várias tentativas anteriores, a proposta não passou e pensamos que não seria agora”, diz Julián Ovalle, um jovem objetor de consciência declarado, mas não reconhecido pelo Estado, pois, por discordância de princípios, se negou a servir ao Exército ou pagar a livreta militar que o dispensaria. Dessa forma, Julián ficou impedido de se formar, apesar de já haver concluído o curso de psicologia.
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Agência Efe
Presidente colombiano sancionou lei que põe fim à exigência da livreta militar para a emissão de diploma universitário
Depois que passou pela Câmara, a lei recebeu a sanção do presidente Juan Manuel Santos no dia 18 de dezembro, sinal verde para entrar em vigor a partir de 2015. “Apesar de ser uma iniciativa de uma deputada num momento de oportunidade e sem consultar as organizações sociais, esse tema dificilmente entraria na pauta institucional se não fossem muitos anos mobilização social. Mesmo não sendo fruto de uma ação direta nossa, foi resultado de muitos anos de trabalho”, afirma ele, que é integrante da Acooc (Acción Colectiva de Objetores y Objetoras de Conciencia), um dos vários coletivos que usam de estratégias jurídicas e de comunicação, como vídeos, teatro e clown, para questionar o militarismo, especialmente nas grandes cidades como Bogotá, Cali e Medellín.
Julián chegou a interromper a graduação em 2006, desestimulado por saber que não poderia se formar por conta da falta da livreta. Retomou posteriormente e concluiu o curso em 2012 pela Universidade Nacional da Colômbia, mas não podia receber o certificado de conclusão. Agora, ansiosamente, já adianta os papéis que o permitiriam obter o diploma em março de 2015, possivelmente como o primeiro colombiano “livre da livreta” a conseguir oficializar seu título universitário.
País mais militarizado da América Latina
“Libre de Libreta” é o nome da campanha mais recente impulsionada pela Acooc. Entre os materiais produzidos se destacam vídeos com depoimentos de objetores e apoiadores da causa, como o jurista Carlos Gaviria, ex-senador e ex-presidente da Corte Constitucional, órgão máximo da Justiça colombiana. Ele afirma que, diante das expectativas de um acordo de paz entre o governo e as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), seria uma boa mensagem para o país suprimir as exigências da livreta militar para temas relacionados com educação e trabalho. “Acredito que se a livreta militar se antepõe ao direito à educação e ao trabalho, algo deve estar caminhando ao contrário neste país”, diz em depoimento.
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A vitória sobre o tema da exigência de livreta para o diploma universitário é apenas um primeiro passo, pois ainda continuam as proibições de seguir carreira administrativa, tomar posse no serviço público ou assinar contratos com entidades públicas sem portar tal documento. Além destas questões, o discurso e a ação dos jovens objetores colombianos busca realizar uma crítica profunda no país.
Com um conflito armado interno que já dura mais de 60 anos, a Colômbia registra a maior proporção de investimento militar da região, com previsão de US$ 27,7 bilhões para serem gastos este ano em Defesa e Polícia, o que equivale a 17,9% do orçamento nacional de 2014. Isso faz com que o setor ocupe o primeiro lugar na região, superando, por exemplo, os investimentos em Educação (17,6%) e Saúde e Proteção Social (11,6%), segundo previsão do Ministério da Fazenda.
Dados do Sipri, órgão independente sueco que reúne informações sobre investimentos militares, mostram que os gastos em Defesa corresponderam a 3,4% do PIB colombiano em 2013, enquanto no Brasil o total foi de 1,4% e todo o resto da América do Sul manteve em torno de 0,9% e 1,9%.
Apesar de representar uma quantidade bastante pequena do orçamento militar colombiano, os objetores alegam que pagar a livreta seria contribuir para a guerra, uma vez que esta arrecadação é destinada diretamente para as forças militares. Além disso, obtê-la significaria entrar na condição de reservista do Exército, sendo obrigados a se apresentar em caso de conflito militar externo, o que iria contra suas consciências.
Denúncias contra recrutamento forçado
Para Diego Quiroga, também objetor e integrante da Acooc, um dos problemas mais graves relacionados com a livreta tem relação com as chamadas “batidas” que o Exército realiza para identificar os jovens não estão com sua situação regularizada.
Órgãos nacionais e internacionais denunciam casos de jovens detidos e enviados em caminhões do Exército até quarteis distantes onde são levados a servir, o que configuraria recrutamento forçado por parte da força pública.
Foi o que aconteceu com Yefferson Acosta, que, depois de uma batida em Bogotá, foi levado com outros jovens num caminhão e no dia seguinte direcionado a um quartel a mais de 500 quilômetros da capital, onde devia prestar o serviço militar contra sua vontade. Filho de religiosos e integrante da Igreja Petencostal, ele afirma que desde os três anos era levado à missa, onde ouvia que não deveria matar ou cometer violência, de modo que considera que servir ao Exército seria contra seus princípios religiosos.
Vitor Taveira/Opera Mundi
Diego Quiroga (esq.) e Julián Ovalle (dir.), jovens colombianos objetores de consciência e integrantes do grupo antimilitarista Acooc
A partir de denúncias dos coletivos antimilitaristas e da realização de visita ao país, o Grupo de Trabalho sobre Detenção Arbitrária da ONU (Organização das Nações Unidas) publicou um pronunciamento em 2008 condenando a realização das batidas. Em 2011, a Corte Constitucional colombiana também emitiu uma sentença afirmando que a prática configuraria detenção arbitrária, baseado no fato de que o artigo 28 da Constituição impede prisão ou captura sem ordem judicial.
Apesar disso, as batidas continuam sendo realizadas, o que levantou polêmica este ano em Bogotá, onde o então prefeito Gustavo Petro denunciou estas ações, especialmente nas regiões periféricas da capital. “A Corte Constitucional proibiu a batida contra jovens. Sua realização em Bogotá tipifica o delito de sequestro”, declarou em sua conta de Twitter em agosto, depois de que mais de 150 jovens foram recrutados no sul da cidade.
O artigo 18 da Constituição Política da Colômbia, que trata de liberdade de consciência, afirma que ninguém poderá ser obrigado a atuar contra suas convicções ou crenças. “A objeção de consciência é um direito emergente na Colômbia”, considera Diego Quiroga. Porém, apesar de a Corte Constitucional reconhecer o direito à objeção e solicitar ao Congresso a regulação deste direito, nenhuma lei foi aprovada neste sentido. “Ainda assim, ao longo dos anos, mobilizando sobre o tema, posicionando-o na opinião pública, estamos conseguindo cada vez mais arrancar jovens da guerra”, conclui o jovem.