O trabalho constante das dezenas de rádios comunitárias e seus meios digitais foi fundamental para derrotar as forças golpistas e informar a população da Bolívia durante o ano em que o país esteve sob comando da autoproclamada presidente Jeanine Áñez. Essa é a análise de Moises Mercado, economista e analista político que foi diretor de meios estatais do Ministério da Comunicação entre 2014 e 2015, durante o governo do ex-presidente Evo Morales.
Em entrevista a Opera Mundi, Mercado destaca que o cenário da comunicação após o golpe de Estado de novembro de 2019, que forçou a renúncia de Morales, era muito desfavorável ao campo popular, já que a imprensa privada estava apoiando as iniciativas da direita e os meios estatais passaram a ser controlados pelo governo autoproclamado.
“Chega um momento em que os canais estatais, que eram nossos, passam a ser instrumentos do governo golpista, o governo de Áñez. As pessoas imediatamente desconfiam desses canais e vão se informar pelos meios alternativos. Isso foi muito importante para resistir e para denunciar o que estava acontecendo no país”, diz.
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A Bolívia aprovou, em 2011, sua primeira lei de democratização dos meios de comunicação. Desde então, concessões e frequências de TV e rádio são dividas proporcionalmente entre o setor privado, o estatal e o comunitário e indígena, cada um com 33% de exclusividade.
Mercado explica que, apesar de a lei abranger todos os setores da comunicação, inclusive a internet, os movimentos populares e organizações de povos originários que comandam iniciativas de comunicação popular focam seus trabalhos nas emissões radiofônicas, pela praticidade tecnológica e baixo custo comparado com uma emissora de televisão, por exemplo.
“Ao todo, temos 54 rádios que são comandados por povos originários e movimentos populares, que chegam a cerca de 32% da população boliviana, especialmente nas zonas rurais. Apesar de termos garantido um sinal de televisão, ainda não foi possível estruturar e financiar essa iniciativa, mas na internet, a maioria das rádios já tem páginas nas redes sociais e transmitem sua programação ao vivo”, afirma.
Massacre de Senkata, protestos e vitória de Arce
Segundo o ex-diretor de meios estatais, as rádios comunitárias foram essenciais para denunciar os abusos cometidos pelo governo de Áñez, estando presentes e transmitindo informações sobre a repressão que os primeiros movimentos de resistência ao golpe sofreram.
Os mais graves e mais violentos foram os massacres de Senkata, em El Alto, e de Sacaba, em Cochabamba, que ocorreram dias depois do golpe e e deixaram um saldo de 36 mortos e mais de 50 feridos após soldados e policias abrirem fogo contra manifestantes.
“[As rádios] narravam, descreviam e denunciavam o que acontecia em El Alto, Cochabamaba, Senkata, os atos violentos, os massacres. Então, ao longo desse processo golpista, se produz uma corrente informativa nos meios alternativos que informava sobre os ataques”, lembra.
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Rádios populares e de povos originários denunciaram abusos cometidos pelo governo golpista
Mercado ainda destaca o papel ativo desses meios na convocação de protestos e manifestações de resistência ao governo autoproclamado. O mais importante deles, segundo o boliviano, foi a greve geral de agosto de 2020, que pedia a renúncia de Áñez e denunciava a tentativa do TSE de proibir o MAS, partido do novo presidente do país, Luis Arce, de participar das eleições.
Durante as campanhas eleitorais, essas emissoras voltaram a cumprir um papel decisivo, diz Mercado, “porque o MAS tem uma estrutura muito interessante, os deputados e senadores nascem das organizações e movimentos sociais, então essas rádios foram instrumentos desses candidatos para difundir seus programas”.
A vitória eleitoral de Arce no primeiro turno das eleições de outubro também teve nas rádios comunitárias e indígenas um grande aliado, destaca Mercado, “inclusive pelo alcance dessas emissoras em regiões distantes, isso foi fundamental para a vitória do MAS em todo o território”.
Repressão de Áñez e futuro com Arce
O trabalho de resistência e denúncia das rádios comunitárias não passou desapercebido pelo governo golpista de Áñez, que iniciou uma ofensiva contra esses meios alternativos. Quem explica esses ataques é o ex-diretor do Sistema Nacional de Rádios dos Povos Originários, Eduardo Loayza.
Em entrevista a Opera Mundi, o comunicador boliviano aponta que enquanto os grande meios se entregavam “de corpo e alma” aos golpistas, as rádios denunciavam “os atos de violência à população de comunidades mais afastadas” e entravam no radar da repressão.
“Áñez tentou amedrontar esses comunicadores populares, indígenas e camponeses, com perseguição policial, judicial e virtual através de ataques cibernéticos de sabotagem”, afirma.
Segundo Loayza, “o governo de Áñez se organizou para retirar a licença de funcionamento dessas rádios”.
“No caso das Rádios dos Povos Originários, onde eles puderam, retiraram equipamentos para interromper as transmissões e também anularam contratos de publicidades que mantinham com o Ministério da Comunicação”, diz.
O boliviano ainda cita o papel de trabalhadores de emissoras como Kausachun Coca e rádios de povos originários de diversas cidades que, em suas palavras, “se converteram em guerreiros digitais que ajudaram a desmontar as mentiras e abusos do regime”.
Com o governo de Arce, que marca o retorno do MAS ao poder, Loayza espera que sejam restabelecidas os convênios com o Ministério da Comunicação e que as emissoras comunitárias e populares sejam fortalecidas, principalmente depois do papel que desempenharam durante o golpe.
“Devemos voltar a fortalecer esses meios com equipamentos e verbas publicitárias para que possam se sustentar. Eu considero que esses meios alternativos e comunitários devem ser mais apoiados, principalmente após a experiência vivida com o golpe de Estado e o papel que tiveram os grandes meios tentando sustentar o golpe e ocultar informações”, afirma.