As lutas populares e progressistas na África do Sul do início dos anos 1970 enfrentavam forte repressão do governo supremacista branco encabeçado pelo Partido Nacional (PN), que comandava e dava sustentação política ao regime de segregação racial, o apartheid, desde 1948. Buscando driblar os aparatos repressivos e prosseguir a mobilização contra a opressão social e econômica, um grupo de lutadores e intelectuais, reunidos no chamado Movimento da Consciência Negra, impulsionou ações comunitárias para ampliar a força dos sul-africanos.
Foi desta forma e em meio a esse cenário que surgiu o Programa da Comunidade Negra (BCP, na sigla em inglês), uma das mais notáveis e singulares formas de luta adotadas pelas forças progressistas sul-africanas daquele período.
Lançado em 1972, o BCP se formou a partir das filosofias defendidas pelo Movimento da Consciência Negra, que visavam dar à população negra o poder de se tornar autossuficiente.
Naquele momento, ainda sob o apartheid, que havia estabelecido diversas políticas que dificultaram a luta contra o regime, colocando organizações e partidos na clandestinidade e prendendo militantes, incluindo o ex-presidente Nelson Mandela, o programa tinha como um dos principais objetivos auxiliar a comunidade negra na tomada de sua própria identidade, utilizando a cultura, teologia, educação e entre outros para responder à necessidade de melhorar o bem-estar da comunidade, castigada pelo regime.
Os programas, para o movimento, visavam não somente uma consciência crítica das relações sociais entre aqueles que estavam sendo oprimidos, mas a urgência de transformar essa compreensão em projetos que pudessem libertar os negros da dominação branca.
Segundo o pesquisador Mwelela Cele, em dossiê intitulado Programas da Comunidade Negra: a manifestação prática da filosofia da Consciência Negra, publicado pelo Instituto Tricontinental, o programa cumpriu “um papel” na história da África do Sul, já que, o Movimento da Consciência Negra “incentivou e ensinou as pessoas a serem psicologicamente livres”.
Em entrevista a Opera Mundi, o pesquisador sul-africano disse que, durante o apartheid, as pessoas oprimidas “pensavam que ser oprimido era uma vida normal”. Nesse sentido, segundo ele, o programa “contribuiu significativamente para a libertação da África do Sul do regime”.
“O Movimento da Consciência Negra, por meio do Programa da Comunidade Negra, dizia que eles [os oprimidos] não deveriam esperar por esmolas, mas deveriam ajudar a si mesmos, deveriam se libertar da opressão e da escravidão psicológica”, afirmou.
Ainda no dossiê da Tricontinental, Cele abarca como funcionou o projeto, que incluía a criação de publicações e pesquisas, centros de saúde, posto de trabalho, e um fundo de apoio a ex-presos políticos.
Segundo a publicação, para compreender esses projetos que ressuscitaram a luta contra o regime de segregação, é necessário entender o contexto em que foram lançados, quando a Campanha de Resistência ao Passe e o Massacre de Sharpeville marcaram o apartheid sul-africano.
Ambos episódios evidenciam as políticas do governo contra a população negra e as lutas de movimentos sociais contra o PN. No primeiro, Robert Sobukwe, o presidente do Congresso Pan-Africanista (CPA), iniciou uma “campanha contínua, disciplinada e não violenta” contra a lei que exigia que todo cidadão negro portasse uma caderneta que continha diversas informações. O segundo, por sua vez, escancara a repressão policial, quando no município de Sharpeville, próximo a Joanesburgo, a polícia da África do Sul atirou em uma manifestação pacífica, matando 69 pessoas.
Com o BCP em funcionamento, os organizadores buscaram realizar os projetos em diferentes áreas, uma delas foi as publicações de pesquisas e textos autorais de negros para a comunidade negra. A ideia dos militantes era fazer com que a população tivesse contato com os eventos do país, entrevistas com lideranças comunitárias sul-africanas, até manuscritos dedicados aos profissionais e acadêmicos.
Steve Biko Foundation
Centro de Saúde Comunitário Zanempilo formado pelo BCP continua aberto até os dias de hoje
Outra tarefa do programa foi a criação de centros de saúde para atender e dar suporte à população. Um desses espaços, é o Centro de Saúde Comunitário Zanempilo, localizado em uma zona rural de Zinyoka, que continua aberto até os dias de hoje. Após o fim do regime, em 1994, o novo governo da África do Sul assumiu o controle do local.
Dentro dos projetos também foi aberta a Fábrica de Couro Njwaxa com o intuito de dar independência financeira aos trabalhadores que desempenhavam funções ali e que foram economicamente marginalizados durante o regime. Além disso, o BCP criou o Fundo Zimele, uma fonte de apoio que pudesse garantir as necessidades básicas de ex-presos políticos.
Steve Biko: precursor da Consciência Negra
Parte desta organização é ligada à história do militante Steve Biko, o então estudante de medicina que fundou a Organização dos Estudantes Sul-Africanos (Saso, na sigla em inglês). A entidade foi um movimento composto por alunos exclusivamente negros, evoluindo mais tarde para a construção da ideologia da consciência negra.
Biko defendia que a “arma mais potente” que poderia estar “nas mãos dos opressores” era justamente a “mente dos oprimidos”. Para ele, a consciência negra buscaria “canalizar as forças reprimidas das massas negras enfurecidas para uma oposição significativa e direcional, baseando toda a sua luta nas realidades da situação”.
O militante participou ativamente da criação e elaboração dos projetos. Um dos jornais do BCP, o Black Review, foi encabeçado por Biko. A primeira edição estava programada para sair em 1972, mas foi publicada no ano seguinte, sem os créditos do militante como editor, já que ele estaria na lista de banidos pelo governo.
Cele destacou o papel de Biko no processo da implementação dos projetos sociais. De acordo com o pesquisador, quando os estudantes universitários lutavam pela educação gratuita na África do Sul, “seus símbolos eram Steve Biko e o Movimento da Consciência Negra”, apontando que organizações de base no país “olham para a história” do movimento e do Programa da Comunidade Negra. “O livro de Steve Biko, I Write What I Like, é muito popular na África do Sul e em outras partes do mundo”, disse.
A contínua repressão do regime conseguiu fechar as organizações em 1977. O governo baniu o Movimento da Consciência Negra e seus afiliados. Em setembro do mesmo ano, militantes do movimento foram levados a julgamento e Biko foi preso, torturado e morto na prisão. No entanto, para o especialista, as pessoas na África do Sul “continuam aprendendo” com o trabalho das entidades.
“O legado do Programa da Comunidade Negra é a autoconfiança, ser psicologicamente livre e ser capaz de identificar opressão ou ver quando você está sendo oprimido. Na África do Sul, existem pessoas que se tornaram escritores, poetas, músicos, atores e fabricantes de teatro durante a era do Movimento da Consciência Negra. Até hoje eles são conhecidos e seu trabalho é respeitado internacionalmente. Eles são os legados do Movimento da Consciência Negra”, declarou Cele.
Mesmo com a força estatal afetando as organizações sociais e a própria sociedade, a resistência da população negra seguiu de diversas formas até 1994, quando o regime de segregação racial na África do Sul finalmente acabou com Nelson Mandela eleito presidente do país nas primeiras eleições multirraciais sul-africanas.