A criatividade da torcida argentina durante a Copa do Mundo não ficou só por conta das músicas e provocações aos rivais em campo. Fora das quatro linhas, os torcedores também tinham seu alvo. Durante os jogos, quase sempre foi possível ver alguma bandeira com a frase “Fora fundos abutres”, entre os hinchas da albiceleste.
Os “abutres”, como ficaram conhecidos no país sul-americano, são fundos de investimento que compraram títulos da dívida argentina a um valor nominal muito inferior ao que exigem cobrar na Justiça. Em junho, a Suprema Corte dos EUA rejeitou a apelação argentina e manteve a sentença do juiz federal Thomas Griesa, de Nova York. Em 2012, Griesa determinou que a Argentina deveria pagar na íntegra a dívida com os fundos Aurelius Management e NML Capital, uma unidade da Elliott Management, do bilionário Paul Singer.
Mesmo durante o grande evento do futebol mundial, foi intenso o debate sobre como agir diante do impasse que pode empurrar a Argentina à inadimplência: se tenta pagar os credores que entraram nas reestruturações da dívida, corre o risco de ter o dinheiro embargado e revertido aos fundos beneficiados pela Justiça norte-americana. Se não paga, o país não honra seus compromissos e pode entrar em default.
Ilegalidade da dívida
Em 2000, o juiz argentino Jorge Ballesteros sentenciou que a dívida externa do país foi “grosseiramente incrementada a partir de 1976 [ano do último golpe militar] mediante uma política econômica vulgar, que deixou o país de joelhos”.
Agência Efe
Governo de Cristina Kirchner enfrentará semana decisiva sobre questão dos “fundos abutres”
Ballesteros é lembrado por quem defende a investigação da dívida, como Leandro Amoretti, economista e referente do partido Pátria Grande, legenda nacional recém-lançada por uma frente de movimentos populares. “É necessário suspender o pagamento e investigar a dívida”, afirma em entrevista a Opera Mundi. Ele defende que o exemplo equatoriano de auditoria e reestruturação a partir das provas de ilegalidade da dívida pode servir de exemplo para um debate similar na Argentina.
No entanto, Amoretti acredita que isso depende também de um grande apoio regional. “Uma decisão como essa não pode ser pensada sem articulação de países latino-americanos, que também foram submetidos aos grandes capitais financeiros internacionais”, avalia. “A Argentina precisaria de apoio público e de acordos de investimento produtivo que mostrem que o país é soberano e vai pagar suas dívidas. Não é fácil, mas é o que deve ser feito.”
David Acuña, da Corrente Peronista Descamisados, movimento social de base, também acredita que a dívida deveria ser considerada ilegal. “O pecado original foi tê-la reconhecido em 1983, com a volta da democracia”, defende. No entanto, ele acredita que a correlação de forças hoje obriga a Argentina a uma negociação com os credores, sem descuidar de outras medidas que diminuam a dependência do mercado financeiro.
“Existe um processo forte de unidade das nações que integram a Unasul (União de Nações Sul-americanas) e esse é um âmbito onde se deve definir pautas conjuntas de funcionamento regional contra fundos especulativos”, defende Acuña. “Internamente, é preciso frear a estrangeirização da terra e democratizar o acesso a ela, avançar sobre o capital estrangeiro com uma eventual nacionalização, rever taxas sobre movimentação financeira, fazer com que especulação financeira não seja um bom negócio.”
Acuña também acredita que o debate não pode estar à margem das consequências humanas do pagamento da dívida. “Destinar o dinheiro ao pagamento implica que haja menos recursos para infraestrutura, subsídios e programas de transferência de renda. A vida cotidiana das classes populares seria afetada e seríamos um país para poucos”, afirma.
Amoretti concorda com Acuña. “Destinamos à dívida muitos milhões de dólares que poderiam ser usados em desenvolvimento interno. Os anos que sucederam a crise de 2001 foram melhores que a década anterior, mas a consolidação da internacionalização da economia e a dependência de capitais estrangeiros faz com que ainda estejamos muito longe dos níveis de igualdade e soberania que um dia tivemos.”
Bitcoin
Para Santiago Siri, um dos idealizadores do Partido de la Red (Partido da Rede, em português), o governo argentino deveria cogitar a possibilidade de ser o primeiro a arriscar uma pequena parte de suas reservas em Bitcoin, sistema virtual de transações financeiras. Para Siri, a decisão de desprender-se do dólar poderá revolucionar o sistema financeiro.
“Se nossas reservas estão em dólares, é preciso pensar que tipo de soberania há em relação a elas. E se vamos falar de soberania, acredito que é preciso apostar em uma nova alternativa. Ao colocar 1% das reservas em Bitcoin, a Argentina tem a oportunidade histórica, com um risco marginal, de ser protagonista de um novo sistema financeiro”, desafia Siri.
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O sistema Bitcoin é descentralizado e não passa por nenhuma instituição financeira reconhecida hoje. As transações são feitas no sistema peer to peer (ponto a ponto), que permite compartilhamentos em rede sem a necessidade de que os dados passem por um servidor central, que no caso do sistema financeiro atual seriam os Bancos Centrais.
“É muito difícil se desvencilhar do paradigma do dólar para atribuir valor a qualquer coisa. Mas o dólar também é ficcional, é emitido sem lastro”, diz Siri. “Mais importante que olhar a proposta pelo lado quantitativo é olhá-la pelo qualitativo: se um Estado decide ser o primeiro em formar parte do Bitcoin, certamente seria um ator dominante nesse sistema financeiro.”
Prazo final
Em 26/06 – quatro dias antes do primeiro vencimento – a Argentina pagou US$ 1,15 bilhão a credores que entraram nas reestruturações de 2005 e 2010. Parte do pagamento, US$ 539 milhões, foi depositada no BONY (Bank of New York Mellon), mas Griesa ordenou o bloqueio dessa quantia, o que impediu que os bonistas recebessem o pagamento.
Na última segunda-feira (21/07), Griesa negou o pedido de Buenos Aires para reestabelecer a cautelar à sua sentença, o que permitiria que a Argentina pagasse os credores da dívida reestruturada enquanto negocia com os chamados “fundos abutres”. O juiz nova-iorquino manteve o bloqueio ao dinheiro depositado pelo país sul-americano no BONY.
Em 30/07 vence o segundo prazo para o pagamento aos bonistas que entraram nas reestruturações. O governo de Cristina Kirchner afirma que, em caso de ter de pagar a dívida integral com os “abutres”, haveria possibilidade de que outros credores exijam na justiça as mesmas condições ao ativar a cláusula RUFO (Direitos Sobre Ofertas Futuras, na sigla em inglês) do contrato de reestruturação, o que impossibilitaria qualquer pagamento da dívida.