Sorridente, de camisa quadriculada, Abdelhadi Faraj poderia se passar por turista, em férias no Uruguai. No computador da antiga casa de Montevidéu, ele mostra as fotos da viagem à cidade histórica de Colônia, a convite de um empresário local. O sírio, de 34 anos, aparece junto com seus companheiros em uma fazenda, na piscina, compartilhando um churrasco e sobrevoando o país que o acolheu em um jatinho particular. Nem parece que Abdelhadi vive em liberdade há apenas três meses, depois de passar um terço da vida em Guantánamo — a prisão militar norte-americana na ilha de Cuba, para onde foram levados centenas de suspeitos acusados de terrorismo, depois do ataque de 11 de setembro de 2001 às torres do World Trade Center, em Nova York.
Detido em 2002, enquanto tentava cruzar a fronteira do Afeganistão com o Paquistão, ele poderia ter saído de Guantánamo em 2009, quando o governo norte-americano, após reexaminar seu processo, determinou a transferência. “Permaneci outros cinco anos nessa prisão, desesperado ao ver que meu próprio país, a Síria, mergulhava em uma sangrenta guerra civil, tornando a minha repatriação impossível”, conta Abdelhadi, em carta de agradecimento que publicou no jornal El Pais, assim que desembarcou em Montevidéu em dezembro. “Se não fosse pelo Uruguai, eu ainda estaria naquele buraco negro em Cuba.”
Divulgação/Agência Brasil
O ex-preso de Guntánamo Abdul Ourg, da Tunísia, faz uma oração na casa onde vive em Montevidéu
Abdelhadi é um dos seis prisioneiros de Guantánamo, libertados pelos Estados Unidos e acolhidos pelo governo uruguaio como refugiados. “Nem consigo acreditar que estou aqui”, disse, em entrevista à Agência Brasil. Três meses em liberdade foram o suficiente para que ele se atualizasse: abriu conta no Facebook, aprendeu a dirigir com um amigo e instalou no computador um programa gratuito para aprender espanhol. Ele quer trabalhar como açougueiro, profissão que exercia antes de ser preso. Mas a inserção na sociedade leva tempo – especialmente em um país estranho, longe da família.
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“Eu sei cortar a carne de acordo com o rito muçulmano, que é diferente do jeito que fazem aqui”, explica Abdelhadi. “E ainda não me recuperei do tempo que passei em Guantánamo: tenho dor de estômago, asma e me sinto cansado”, diz.
Nesta semana e na outra, os seis ex-prisioneiros — quatro sírios, um tunisiano e um palestino — serão examinados no Hospital Militar (o mesmo para onde foram levados assim que chegaram a Montevidéu). O próximo passo será reacomodá-los: até agora, o grupo estava sendo acompanhado pela central sindical uruguaia PIT-CNT, que emprestou um antigo casarão para alojá-los. Mas o espaço era pequeno e dois deles foram levados a um hotel, até que o Sedhu (Serviço Ecumênico para a Dignidade Humana), organização humanitária dedicada a refugiados, assuma o caso deles e encontre um apartamento para cada um.
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O sírio Jihad Diyab tem outras preocupações, além da saúde e de sua instalação no país. É o único do grupo que é casado. Um de seus filhos morreu há pouco mais de um ano, quando ele ainda estava em Guantánamo. Os outros três e a mulher fugiram da guerra na Síria para a Turquia, mas acabam de ser devolvidos a seu país e, segundo Diyab, correm risco de morrer. Ele pediu permissão para trazê-los ao Uruguai, mas ainda espera a resposta da Cruz Vermelha e a resolução de trâmites internacionais.
Visita de Mujica
No mês passado, Diyab viajou de improviso a Buenos Aires, onde vestiu o uniforme laranja dos prisioneiros de Guantánamo para falar a um pequeno grupo de jornalistas de meios alternativos argentinos. Ele contou que foi torturado, que fez greve de fome e que processou o governo norte-americano, depois que os carcereiros enfiaram um tubo no seu nariz para alimentá-lo à força. Diyab, cuja mãe é argentina pediu a Buenos Aires que siga o exemplo de Montevidéu e se ofereça para acolher os prisioneiros que continuam em Guantánamo — apesar da promessa de campanha do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, de que iria fechar a prisão militar em definitivo assim que assumisse a Casa Branca, em 2009.
Divulgação/Agência Brasil
Com o polegar machucado em Guantánamo, ex-preso mostra foto da visita que recebeu do ex-presidente Pepe Mujica
Tanto Diyab quanto o tunisiano Abdul Ourgi consideram que, apesar das boas intenções, a situação dos prisioneiros em Guantánamo é pior com Obama do que com seu antecessor, o republicano George W. Bush. “Antes, estavam começando a libertar muitos de uma só vez, mas com Obama estão liberando prisioneiros a conta-gotas”, disse Ourgi, durante a entrevista à Agência Brasil.
De todos os ex-prisioneiros no Uruguai, Ourgi seria o mais perigoso, na avaliação do Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Ele é citado como um “expert em explosivos”, que teria conhecido Osama Bin Laden e recebido, com antecedência, informações sobre seus planos para atacar as torres do World Trade Center. Ourgi sorri quando vê o documento: diz que perdeu um pedaço do polegar e tem cicatrizes no corpo, porque estava nas montanha afegãs, bombardeadas pelos norte-americanos, que queriam destruir o quartel-general do grupo terrorista Al Qaeda. “Mas o resto do que contam não é verdade”, garante. “A prova é que o próprio [ex-presidente do Uruguai] Jose Pepe Mujica contou que recebeu um documento do governo dos Estados Unidos, assegurando que nenhum dos ex-prisioneiros no Uruguai é terrorista ou representa ameaça.”
Mujica fez uma visita de surpresa à casa do PIT-CNT, poucas semanas antes de concluir seu mandato presidencial, no último domingo, dia 1º de março. “Ele nos contou que foi guerrilheiro tupamaro, que esteve preso 13 anos e que passou dez deles isolado em um poço”, conta Ourgi. O tunisiano, de 49 anos, assistiu pela televisão à cerimônia de posse do sucessor de Mujica, Tabaré Vázquez. “Vi um presidente entregando o poder a outro, sem problemas. Não é como nos países árabes, onde quem chega ao poder acaba ficando 10, 20, 30 ou até 40 anos.”
Ourgui esteve no Brasil por algumas horas. Foi durante uma recente excursão a Chuí, uma cidade uruguaia na fronteira. “Cruzamos a rua para o Brasil, mas não fomos longe — ainda assim deu para perceber que [a vida no] Brasil é mais barata do que no Uruguai”, disse.
Ter como se sustentar é o que preocupa Ourgi agora. “Durante 13 anos, eu só pensava em sair de Guantánamo. Agora, tenho que me preocupar com a comida, a roupa, as contas, em um país caro”. Ele gostaria de trabalhar de cozinheiro — e, quem sabe, no futuro, abrir um restaurante árabe. “Mas não é tão fácil quanto parece. Noventa dias é pouco tempo para se acostumar à liberdade, se recuperar de Guantánamo e buscar emprego”, disse. “Mas não podemos ficar sem trabalhar, porque recebemos 15 mil pesos uruguaios [R$ 1,7 mil], o que é pouco em relação ao custo de vida uruguaio”, disse. Se tudo der certo, Ourgi quer trazer ao Uruguai a mãe, que não vê há 25 anos.