Dois pares de sapatos pretos, em close, no tapete vermelho. Um deles rasteiro, gasto e um pouco sujo. O outro, de salto alto, brilhante, impecável. Os calçados da presidente argentina e da chanceler alemã foram respectivamente fotografados quando ambas caminharam pela esplanada do governo germânico em outubro do ano passado. A imagem ganhou destaque nos jornais argentinos como exemplo de “por que Cristina Kirchner e Ângela Merkel são diferentes”.
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A dos sapatos gastos rentes ao chão, “rígida, provocadora e simples”, segundo a imprensa, “mostrou poder” durante um almoço em Berlim e questionou a dona dos lustrosos saltos sobre o pagamento da dívida argentina com o Clube de Paris. A escolha da foto para ilustrar o encontro é um dos exemplos das investidas da imprensa argentina para insinuar que a preocupação com bolsas e sapatos não permite uma dedicação com afinco à condução do país. Que a vaidade é incompatível com a eficiência.
Mencionada pela jornalista Sandra Russo em seu novo livro, lançado em agosto titulado La Presidenta: Historia de una Vida (Sudamericana, 317 páginas), após quatro entrevistas exclusivas com Cristina Kirchner e de anos de trabalho no periódico Página 12, a tentativa midiática de caracterizar a mandatária como fútil não é um episódio isolado. “A misoginia ainda está tão incrivelmente naturalizada em outras maneiras de ver as coisas que pouco se falou do preconceito de gênero que se pôs em funcionamento ao redor da figura de Cristina, já desde a campanha eleitoral”, explica a autora.
Presidência argentina
Cristina à frente de um quadro de Eva Perón
A naturalidade com que ocupou cargos políticos em universos ainda predominantemente masculinos, sem renunciar à vaidade e à feminilidade, pouco vistas em outras chefes de Estado, são alguns dos assuntos abordados extensamente no livro. O cuidado de Cristina Kirchner com sua imagem vem desde menina. A cada dia ela era mandada ao banheiro da escola de freiras para lavar o rosto, o que fazia sem pestanejar, sabendo que, quando acabada a aula, abriria o espelhinho para se maquiar outra vez.
“Fui criada com duas mulheres que eram muito femininas, que não negavam sua condição de mulheres. Ao contrário: reafirmavam”, explica a presidente à jornalista, em referência à mãe, sindicalista fervorosa, e à tia. Russo se surpreende ao abordar Cristina, dona de olhos sempre muito maquiados com tons escuros, com os quais não economiza no rímel e no delineador.
Presidência da Argentina
A quantidade de pintura, o botox e os acessórios, no entanto, são tratados pela imprensa e pelos anti-governistas como uma debilidade. “As críticas de gênero que ela recebeu, generalizando um pouco, foram de duas classes: do lado masculino que agitou o desprezo pela mulher e do lado feminino se destacou a inveja”, analisa Russo.
A autora ainda discorre sobre a inveja entre mulheres. “É feio, mas é assim. (…) Não aprendemos o que fazer com estes sentimentos”, diz. Russo lembra que, em 2008, recebeu um e-mail, assinado por outra mulher, que dizia: “Mostremos a esta mulher (Cristina) que se acha mais do que é, que é uma simples mulher”. Russo ainda compara o estilo de Cristina com os de políticas como Dilma Rousseff e Merkel. Para Russo, as duas primeiras “reproduzem o aspecto maternal, a figura da matrona de direita ou esquerda”. Seriam regras em um meio onde Cristina é exceção, por agregar à sua imagem o componente da vaidade.
A foto dos sapatos mencionada por Russo não é um caso isolado. Na semana passada, quando Cristina participou da assembleia do Conselho de Segurança da ONU, a imprensa local difundiu uma denúncia, de fonte desconhecida, sobre uma compra milionária de sapatos, que a mandatária teria feito na França. A notícia ganhou destaque de importância similar a questões abordadas no discurso de Cristina, como os pedidos de reconhecimento internacional do Estado Palestino e do fim da ocupação inglesa nas ilhas Malvinas.
A questão da feminilidade aparece ao longo de toda a narrativa de Russo, que não deixa de ser uma obra de revelações políticas, que traz declarações e passagens biográficas até então desconhecidas sobre a chefe de Estado. Com um frio condutor que leva desde a infância de Cristina ao início da militância nos fervorosos anos 70, do namoro com Néstor Kirchner, do trajeto político que levou a ambos à Casa Rosada.
Russo obteve declarações exclusivas sobre as vezes em que Cristina sentiu que tentavam destituí-la do governo e sobre a madrugada da morte de Néstor, no dia 27 de outubro de 2010. A ideia inicial da autora partiu de uma foto antiga tirada no zoológico de La Plata, que causou furor na blogosfera. Cristina aparece olhando para baixo, linda, magérrima e com um cigarro na mão. Russo queria desvendar como esta menina de 20 anos, estudante de Direito, se tornou a primeira presidente do mundo a suceder o marido.
O projeto inicial perdeu sentido com a morte de Néstor Kirchner, e se converteu em uma biografia que retrata episódios e características até então não abordados sobre a presidente e sobre sua relação matrimonial. No relato, permeado de análises e impressões pessoais da autora, Russo não hesita em escancarar simpatia pela presidente.
O apoio à gestão de Cristina talvez seja a única debilidade da obra, pois não somente a autora não o justifica como passa longe da menção a episódios questionados sobre a vida da mandatária, como por exemplo o enriquecimento do casal em 28 milhões de pesos argentinos somente em 2008. Apesar disso, o livro permite uma imersão na mentalidade kirchnerista, na dinâmica política ao longo dos anos entre Néstor e Cristina, e em episódios marcantes da vida da chefe de Estado, como o breve período na prisão ocorrido durante a ditadura civil-militar do país (1976- 1983).
Reprodução
A narrativa sobre a presidente argentina acompanha a evolução da militância dos anos 1970, dos impactos pessoais da repressão militar na vida do casal e a evolução das pretensões políticas, inicialmente tímidas, mas fomentadas por muita ideologia peronista, durante seus primeiros cargos públicos nos anos 1990 – de Cristina como deputada e senadora, e de Néstor como prefeito e governador. Nas entrevistas à autora, a presidente argentina revela detalhes da relação com alguns funcionários com quem trabalhou nas distintas funções, inclusive a descoberta de vazamentos de informações ao Grupo Clarín, monopólio midiático opositor ao governo.
Cristina revela ainda ricos detalhes sobre seu relacionamento matrimonial, como as ligações constantes que faziam um para o outro, o necessário equilíbrio entre os temperamentos de ambos no dia a dia e até mesmo dos discursos que ela escrevia para Néstor antes dos atos públicos. Tais detalhes contradizem terminantemente a idéia amplamente difundida entre os oposicionistas de que o governo de Cristina era comandado por Néstor e de que a ela era simplesmente um fantoche das articulações do marido.
A autora aborda ainda as “brigas memoráveis”, como define a própria presidente, travadas diariamente com o marido, em uma rotina que Sandra supõe ser a maior falta na vida de Cristina sem Néstor. As incessantes discussões eram fomentadas pela fome de conhecimento de ambos: Cristina é considerada a estudiosa do casal e devora livros desde criança – quando pequena, chegou a ler a coleção completa das Aventuras de Narizinho, de Monteiro Lobato – e Néstor, também formado em Direito, se empenhou em ler tudo o que pode sobre economia para reverter a caótica situação econômica do país, em 2003.
Em entrevista à autora, Cristina afirma que o dono do grupo Clarín visitou pessoalmente Néstor Kirchner para dizer que não queria que Cristina se candidatasse às eleições presidenciais em 2007: “Em 2008 quiseram me destituir. Sim, não tenho nenhuma dúvida. Não queriam que eu fosse candidata, principalmente o grupo Clarín”. Em uma das várias passagens marcantes do livro, que humaniza a política instalada na Argentina desde 2003, a revelação remete ao início do confronto entre o governo e a imprensa hegemônica do país.
Sem intenção explícita, La Presidenta: Historia de una Vida permite compreender que a origem da firmeza ideológica do kirchnerismo, de luta pelos Direitos Humanos, de democratização da informação e do bem-estar social. A obra está diretamente relacionada a episódios marcantes da vida do casal Cristina e Néstor, principalmente durante os anos de repressão militar, da militância peronista e da pouco dissimulada pressão da grande imprensa do país durante gestão presidencial, que enfrentará as avaliação popular urnas no próximo dia 23.
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