Está na moda escrever sobre Kurt Vonnegut. Biografias recém-publicadas dão o tom de renascimento do escritor norte-americano, morto em 2007. A última, Unstuck In Time, lançada em novembro pela Seven Stories Press (368 páginas, 15,96 dólares via Amazon), tem a chancela de um dos publishers de Vonnegut, Gregory D. Sumner, que também é PhD em história dos Estados Unidos. O resultado, como se supõe pelas credenciais de Sumner, é um oportuno embate entre a persona do autor, ícone bonachão da contracultura, com a mitologia do sonho norte-americano. Faísca para todo lado e algumas ótimas considerações em tempos de crise.
Unstuck In Time, algo como “solto no tempo”, uma referência às narrativas fragmentadas de Vonnegut, surge enquanto os Estados Unidos vivem um segundo Vietnã no Iraque, com a retirada das tropas agendada por Obama até o fim do ano. Nessa esteira, o livro serve para atualizar o eco de um movimento pacifista que nasceu há pouco mais de 40 anos, quando a máxima da “Guerra Justa” começou a se esfacelar.
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Vonnegut foi um dos personagens principais desse movimento. Chegou a ser chamado de “guru hippie” porque publicou em 1969 um dos livros-chave do pleito anti-guerra, Matadouro 5 (L&PM, 224 páginas, 17 reais), que narra o bombardeio covarde de Dresden, na Alemanha, perpetrado por ingleses e norte-americanos após o fim da Segunda Guerra Mundial. A cidade virou pó e ele, como soldado perplexo, testemunhou tudo.
O escritor tornou-se, anos depois de escapar da morte e já famoso, um crítico corrosivo da Guerra do Vietnã, o que o levou a atacar os ex-presidentes Lyndon Johnson e Richard Nixon, e na mesma esteira apontar o dedo para George W. Bush e a escalada antiterror. É uma faceta óbvia de Vonnegut, mas superficial.
Em Unstuck In Time, Sumner relata que, filho da crise de 1929 e ex-soldado do exército, Vonnegut foi também um crítico dividido entre o patriotismo, a ideologia “stars and stripes” e a frustração. “Ele foi um entusiasta do sonho americano, não um revolucionário do tipo touro na loja de cristais”, detalha o biógrafo.
Raízes e galhos
A trajetória de Vonnegut é, também, a trajetória da mitologia do sonho americano. Por isso, ler Unstuck In Time é complemento para quem conhece sua obra e, ao mesmo tempo, uma viagem pela história norte-americana no século XX. São 16 capítulos, 14 deles dedicados a contextualizar as novelas de Vonnegut. Os outros dois dissecam o autor em sua origem e no período que precedeu sua morte, dia 11 de abril de 2007.
Aos fatos: Vonnegut nasceu em 1922 no berço de ricos colonizadores alemães instalados no Estado de Indiana. Bastante ricos, por sinal. Tanto que ele dizia ter sido “vítima” de uma infância feliz. “O que não é o caminho certo para um escritor começar”, afirmou durante evento em 1996. A frase, pinçada pelo biógrafo, é o ponto de partida para a turbulenta adolescência e polêmica vida adulta de Vonnegut – experiências formativas que o transformaram em um aclamado escritor.
Aos sete anos, ele viu sua família quebrar com a crise de 1929. E, apesar de ter bebido tanto da fonte do sonho americano, doutrinado por doses cavalares que glorificam a constituição dos Estados Unidos, o escritor passou a perceber, ainda menino, que alguma coisa estava fora de lugar. “Vonnegut entendeu a fragilidade da condição humana, os paradoxos dos cases de sucesso que estão no centro da nossa cultura”, explica o biógrafo.
A segunda pancada no sonho americano de Vonnegut veio com a Segunda Guerra Mundial. O escritor era um aspirante a jornalista quando foi para a Alemanha. Viu em Dresden o horror das bombas incendiárias caindo sobre civis, que comemoravam o fim da guerra.
Já a terceira pancada ele tomou logo após voltar da guerra. O departamento de antropologia da Universidade de Chicago recusou suas teses de mestrado sobre os conceitos de bem e mal e o empurrou para um emprego burocrático na General Electric, com salário para pagar as contas. Foi quando Vonnegut passou a escrever para valer e começou a fechar seus primeiros contratos, no final da década de 1950.
Anemia com liberdade
Mesmo com vendas “anêmicas” de seus livros, como relata Sumner, Vonnegut passou a fazer parte do chamado “pacote revolucionário” do norte-americano na década de 1970. Seu Matadouro 5 era devorado por estudantes, assim como o outro libelo antiguerra, Catch-22 de Joseph Heller, e o libelo anti-psiquiatria Um Estranho no Ninho, de Ken Kesey, que virou filme oscarizado em 1975, com Jack Nicholson no papel principal.
Vonnegut (foto ao lado) não tentou escrever a chamada “grande novela norte-americana”, conceito-chave da literatura dos Estados Unidos, troféu que passa de mão em mão e hoje está com Jonathan Franzen e seu Liberdade – mais uma tentativa de capturar o zeitgeist do povo daquele país. Mas se empenhou em produzir novelas cáusticas, com narrativas bastante fragmentadas e embebidas em ficção científica.
Como anota Sumner, ele era fã de Theodore Sturgeon, rei do gênero nos Estados Unidos, e dedicou a ele um personagem-chave em sua obra: Kilgore Trout, um dos protagonistas de Café da Manhã dos Campeões (L&PM, 310 páginas, 19,50 reais), publicado em 1973. Trout é, assim como o ídolo de Vonnegut, escritor de ficção científica – mas um fracassado, no sentido “loser” do termo, lugar-comum da cultura norte-americana e um ethos fartamente questionado pelo autor.
Café da Manhã dos Campeões é hoje um clássico ao lado de Matadouro 5, que diverte ao explorar o mundo de Dwayne Hoover, dono de uma concessionária da Pontiac no meio-oeste norte-americano. Ele está prestes a ter um surto psicótico, mas não sabe disso. O culpado pelo surto? Kilgore Trout e sua obra-prima da ficção científica: Now It Can Be Told (Agora Pode Ser Dito), que descreve um mundo em que todas as pessoas seriam robôs – menos o leitor.
A militância sem fervor de um pessimista
É dessa mistura de sci-fi com rancor, de contracultura com sarcasmo, que Vonnegut fez fama. Uma de suas principais lições a jovens escritores, relata Sumner, era: “comece (a escrever) o mais próximo do fim que você puder”. Em outro momento, ele disse que se diferenciava dos demais escritores “porque sabia como funcionava a geladeira de casa”. Um cinismo que deixava muitas perguntas no ar. Algumas delas são respondidas por Sumner em Unstuck In Time, que passeia por seus livros, um a um, para entender as motivações e inspirações do autor.
Talvez um bom parâmetro para entender o posicionamento de Vonnegut é o obituário da Fox News, que recentemente classificou o filme dos Muppets como “comunista”, em um espasmo-revival da Guerra Fria. Segundo a Fox News, o escritor era “irrelevante” nos anos 1970 e morreu como “um esquerdista desesperançado”. Sumner reconhece que, de fato, o autor tornou-se um pessimista contumaz, especialmente após a vitória de George W. Bush nas eleições de 2004 e morreu um ano antes de Obama ascender ao poder, após cair em sua própria casa e sofrer danos cerebrais irreversíveis.
Matadouro 5 continua causando desconforto nos setores mais conservadores da sociedade norte-americana. O livro foi banido em julho deste ano de uma escola no Missouri por ser profano, em um triste repeteco do filme Footloose, em que a obra também é proibida em uma escola no interior dos Estados Unidos. O que mostra que, mesmo um idealista romântico do meio-oeste norte-americano, com alguns valores conservadores, Kurt Vonnegut foi rejeitado pelos seus próprios pares.
Polêmica
Patrick O'Leary/divulgação
A biografia de Sumner não é a única recém-publicada sobre Vonnegut. And So It Goes (528 páginass, 19,33 dólares via Amazon), do biógrafo Charles Shields, que retrata o escritor como um homem amargo e paradoxal, tem causado a ira da família do autor. Segundo Shields, Vonnegut era cruel com sua esposa e chegou a investir na Dow Chemicals, que produzia napalm. O filho do autor recorreu aos jornais para negar as informações.
São controvérsias que alimentam o mito de um escritor-chave da literatura norte-americana – sempre com um caldo político a ser entornado. Ano que vem, ano de eleição nos Estados Unidos, marcará cinco anos da morte de Vonnegut. Sua obra vai, certamente, voltar à pauta, flutuando entre o patriotismo e o pessimismo.
O autor da biografia, Gregory Sumner
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