Na guerra entre o governo argentino e o Clarín, Martín Becerra prefere se manter à margem. Em um país em que o apoio ou oposição ao governo federal costuma resultar em posições radicalizadas, o equilíbrio da análise faz com que a opinião deste especialista, um dos poucos estudiosos de concentração midiática da Argentina, seja requisitada por veículos de comunicação de diferentes linhas editoriais.
Doutor em Ciências da Comunicação e docente na Universidade Nacional de Quilmes e na de Buenos Aires (UBA), Becerra acredita que a Lei de Meios (Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual), aprovada em 2009, representa um avanço importante para o país, apesar de suas ressalvas em relação a alguns artigos e à falta de aplicação de muitas das resoluções não relacionadas à batalha judicial travada entre o governo argentino e o Grupo Clarín.
Luciana Taddeo/Opera Mundi
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Em entrevista ao Opera Mundi, Becerra discorre sobre a potencialidade da legislação que regula o espectro audiovisual, afirma que o governo e o maior conglomerado multimídia do país são “bons álibis mútuos” e garante que não há ataque à liberdade de expressão na Argentina.
Opera Mundi: Após três anos da aprovação da Lei de Meios, quanto se cumpriu até agora?
Martín Becerra: Até agora muito pouco. O governo ainda está longe de cumprir a lei. Não existe o plano técnico, um mapeamento das frequências de rádio e TV na Argentina, para planejar com que ordem de prioridade as frequências são designadas. Os meios públicos deveriam ser públicos e não governamentais, como são. As autoridades de aplicação e controle da lei teriam que estar funcionando há muito tempo, com presença de forças da oposição, mas começaram a se integrar recentemente. A Defensoria do Público prevista na lei foi designada há um mês, então também não teve atividade. A lei exige transparência acerca dos titulares das licenças ou de quanta publicidade oficial destinada a cada meio de comunicação, e nada disso foi feito.
OM: Qual foi o obstáculo para o cumprimento dessas resoluções? O governo esperava o vencimento da liminar do Grupo Clarín para começar?
MB: Claro. Na interpretação do governo, nada pode ser feito se o Clarín não se desconcentra, o que é pouco respeitoso com a legislação aprovada em 2009. Isso motiva que enquanto se espera pelo Clarín, nenhum grupo se adéque, não designem licenças a atores sem fins de lucro, não haja transparência no mercado de comunicações e que os meios públicos sejam parte do arsenal propagandístico do governo. Ou seja, nada do espírito da lei se cumpre na medida em que o governo não quer avançar, ou só quer avançar contra o Grupo Clarín.
OM: Como vê o cenário daqui para frente?
MB: Grupos importantes de comunicação apresentaram planos de adequação que consistem na promessa de se desagregarem em diferentes empresas entre os atuais acionistas. Temos um sistema extremamente comercial de meios, como no resto da América Latina, dirigido por grupos comerciais e privados. Se o Estado aprova planos de adequação com esta tônica, vamos continuar com uma lógica de funcionamento do sistema de meios atual, primordialmente concentrada, de propriedade privada, onde o conteúdo é mercantilizado. Esta é parte da critica que muitos pesquisadores fazemos ao sistema de meios. Se o Estado não aceita, pode ser difícil encontrar compradores para muitas destas licenças, já que as colocadas à venda serão as menos lucrativas e devem vencer em 2016 ou 2017.
OM: Acredita que o governo aceitará este tipo de proposta?
MB: Pelo que o governo diz, tende a aprovar que os empresários atuais fiquem com os grupos que têm, mas dividindo as unidades produtivas, as diretorias. Imagino que interpretem como uma maneira gradual de começar um processo de desconcentração. Trará mudanças, uma correlação de forças distinta entre empresários privados, mas não a desconcentração sonhada por boa parte das massas populares que apoiaram a mudança de lei. Os meios continuarão nas mãos de grandes empresários, mas em sociedades diferentes. Por outro lado, historicamente, a capacidade do Estado argentino, assim como o brasileiro, o uruguaio e o chileno, de controlar que os atores do mercado se comportem com regras weberianas de separação entre si, é escassa.
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OM: Há diferenças no trato do governo em relação ao Clarín e outros grupos?
MB: Isso é evidente e está registrado nos discursos das principais figuras do governo, há uma obsessão com o Clarín. O Clarín foi aliado do governo durante os anos da Presidência de Néstor Kirchner, que inclusive facilitou a concentração do grupo. Desde que romperam, em 2008, a partir da chamada crise do campo, há um enfrentamento público. Basta ver o canal TN [do grupo] ou ler o jornal Clarín para perceber que fazem uma oposição tenaz e constante ao governo. Mas ambos são bons álibis mútuos, porque falando sobre o Clarín, o governo evita outros problemas. O Clarín, por sua vez, pode se vitimar, dizer que está sendo atacado e evitar fazer jornalismo, com a justificativa de que tem um inimigo que supostamente ataca a liberdade de expressão. É uma disputa de poder entre atores muito fortes, que não vacilam em buscar argumentos para prejudicar o adversário.
OM: Acredita que a lei na Argentina foi possível por um momento específico da política nacional?
MB: Sim, claro. Com a ruptura da aliança entre o governo e o Clarín abriu-se uma janela. Sem ela teria sido difícil, foi uma crise política que partiu a sociedade em duas. Quando eram aliados, o governo não impulsionava leis de meios.
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OM: Você tem esperanças de que a lei, se integralmente aplicada, funcione? Ou faltam esclarecimentos e ajustes no texto legislativo?
MB: Os tempos de aplicação das leis costumam ser mais lentos do que as pessoas desejam e estamos num cenário muito conflituoso, em uma conjuntura muito polarizada. Talvez este seja um momento muito complicado para pedir mudanças substanciais, mas eu não deixo de fazê-lo. Pode ser que com o tempo comece a surgir uma cultura de rotações nos órgãos de aplicação e de controle da lei, mudanças nos meios públicos. Tomara que, com o tempo, este direito aos setores sem fins lucrativos vá se concretizando e vá decantando uma cultura mais plural. A Argentina caminha para avanços lentos, mas menores do que se anuncia. Acho que há problemas na lei, mas nenhum deles representa uma crítica maiúscula, estou de acordo com os princípios gerais.
OM: Então as expectativas são positivas?
MB: Para mim, a lei é importante no contexto latino-americano, porque em países como o Brasil, as emissoras comunitárias estão praticamente criminalizadas. No Chile, só podem ser de baixa potência. Meu ceticismo é porque foi uma oportunidade inédita de incidir na regulação dos meios. Comparo as expectativas desatadas quando a lei foi discutida, as promessas realizadas, os discursos exagerados de parte do governismo, não só do governo, mas dos setores que o apoiam, e, diante de tudo isso, a expectativa se desinfla. Mas acho que em médio prazo vai trazer mudanças positivas.
OM: Por que a lei só se restringe aos veículos audiovisuais?
MB: Porque os jornais são propriedade privada, e, na Argentina, pela constituição há um artigo que diz que não se pode restringir nem regular a propriedade privada dos jornais. Por outro lado, o espectro radioelétrico é um recurso público, o dono deste recurso é a sociedade e o Estado é o administrador deste espectro, do qual os meios de comunicação são “inquilinos”.
OM: Inclusive quando se refere à TV por assinatura?
MB: Bom, aí tem uma controvérsia enorme. Isso que te disse vale para os meios abertos. A regulação pela televisão paga é discutível. O Clarín diria que não deveria estar nesta lei, e eu em parte acredito que algo de razão tem, porque há um vínculo físico que não é o espectro. Mas este vínculo físico conforma redes que usam parte do espaço público. Então este é um ponto discutível.
OM: Vê possível a implementação de leis similares nos países vizinhos?
MB: Sim. No Uruguai dizem que discutirão um texto bastante parecido à lei da Argentina. O governo de [José] Mujica não fala da Argentina, porque lá a lei daqui é vista como no Brasil, como uma “mancha venenosa”. O governo de Dilma jamais vai dizer que se inspira na lei argentina porque os meios privados a criticariam. Em grande parte dos países da região, os problemas de meios da sociedade civil, do direito à comunicação, de concentração e de falta de meios públicos, são os mesmos. Os países que estão trabalhando nestes temas têm uma boa oportunidade de revisar criticamente o conteúdo da lei argentina para redigir uma melhorada. As pautas anti-concentração daqui, por exemplo, são de muito difícil aplicação. Os recursos judiciais eram previsíveis, mas não este cenário, no qual empresários queiram dividir entre si as licenças.
OM: Qual seria a solução?
MB: Um capítulo econômico, pensar em como estimular que as licenças dos atuais grupos concentrados privados passem para outras mãos, e não para as dos mesmos empresários de sempre. Além disso, esta é uma lei pensada na cidade de Buenos Aires, não é federal no sentido de garantir a sustentabilidade de meios de comunicação de cidades pequenas de outras províncias argentinas. A lei também deixa de lado a convergência tecnológica entre telecomunicações, internet e meios audiovisuais, o que outros países poderiam considerar.
OM: Como avalia uma regulação no contexto brasileiro?
MB: O Brasil é diferente do resto, em volume, tamanho, uma escala de mercado que permite imaginar, com criatividade, disposições e recursos que não há em nenhum outro país da América do Sul. A torta publicitária televisiva no Brasil é incomparável em sua dimensão com o resto da região. Eu pensaria em como capturar parte desses recursos para redistribuir e gerar conteúdos por outro lado. Isso não daria pra fazer na Argentina. Por outro lado, minha impressão é que a presença do [grupo] Globo no Brasil é muito mais dominante que a do Clarín aqui. Sempre me faço uma pergunta sociológica: por que alguém do Piauí ou de Porto Alegre diz que é brasileiro? O que essas pessoas têm em comum, com culturas, comidas, vestimentas, clima e sotaques diferentes. Isso também acontece na Argentina, mas no Brasil muito mais. Das poucas coisas que têm em comum, que é um valor fundamental de coesão ideológica, cultural, é a Globo. Acho que para a estruturação de um espaço público, a Globo talvez seja mais importante no Brasil do que o Clarín aqui na Argentina.
OM: E isso faz com que a implementação de uma lei assim tenha mais obstáculos?
MB: Muitas variáveis intervêm. Historicamente a ação política no Brasil é mais consensual, pelo menos dizem ser, e acredito que é. Aqui, as formas são mais extremas. Com a oposição do grupo de meios é difícil adotar uma regulação se não se vai a fundo. Também depende de quão poderosos são os grupos, o Clarín também era muito poderoso aqui, mas acredito que menos. Se tivesse que pensar contra o que estou dizendo, pensaria que a Globo não tem um jornal tão poderoso, de tanta importância, como o Clarín aqui, que marca a agenda. O problema em geral dos grupos concentrados, não só do Clarín, também do Globo, Televisa, do México, é que em geral não aceitam nenhuma regulação que não seja a deles mesmos. E qualquer regulação é um ataque à liberdade de expressão, com uma linguagem da guerra fria, essa linguagem da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), que não tem a ver com o que acontece, pelo menos na Argentina. Aqui não há um ataque à liberdade de expressão, mas sim, um ambiente político carregado, exagerado. O mundo não acaba, as coisas continuam, e as leis têm que ser cumpridas.