No carnaval, as ruas dos bairros residenciais de Buenos Aires estão vazias. Não há pessoas fantasiadas, nem música por todos os lados. A capital argentina não responde ao estereótipo de cidade carnavalesca. Mesmo com o feriado de carnaval, que voltou a integrar o calendário argentino em 2011 depois da suspensão em 1976 pela última ditadura militar do país, a folia portenha ainda tenta encontrar seu lugar no coração dos moradores da cidade, que aproveitam os dias de folga para viajar.
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Tradicionais agrupações carnavalescas da capital argentina, as murgas são as protagonistas do renascimento do reinado de Momo na cidade e na região metropolitana. Com letras críticas e de forte conteúdo político, os corsos – desfiles murgueiros – têm um componente teatral e cômico, além de demonstrações de danças que exigem muito vigor físico e as articulações em dia. As cartolas, fraques e vestidos que os participantes usam levam as cores do grupo e é comum apliques elaborados pelos próprios integrantes com alusão a times de futebol, personagens famosos e bandas de rock favoritas.
Aline Gatto Boueri/Opera Mundi
Grupo Herederos, que surgiu entre a uniçao de uma favela com um bairro de classe média: carnaval une vizinhanças
“A murga é uma forma de trazer o bairro de volta às ruas. Com a paranoia relacionada à segurança, a convivência nos bairros diminuiu e os desfiles de carnaval recuperam isso”, conta Marcos Zangaro, da murga Prisioneros del Delirio, da localidade de Sarandí, no sul da grande Buenos Aires. Formada em 2000, o grupo é parte do Movimento de Murgas Independentes e sua sede fica em um clube que faz lembrar o mítico cenário do filme Luna de Avellaneda, do argentino Juan José Campanella.
“Optamos por ser autogestores. Nossos recursos vêm de festas e atividades que organizamos no bairro ao longo do ano. O vínculo com o clube também é importante porque é uma forma de envolver os vizinhos”, explica Marcos um pouco antes de vestir suas roupas coloridas e pintar o rosto para a apresentação dos Prisioneros. “É importante ter vivido a luta pela volta do feriado de carnaval e hoje ver que há uma praça no bairro que leva o nosso nome”, se emociona.
Desde o final dos anos 1990, quando muitas murgas voltaram a ensaiar e a fazer desfiles tímidos, até a volta do feriado, o carnaval passou da indiferença governamental a objeto de políticas públicas. Durante anos, as murgas eram o principal ator das “marchas carnavalescas”, que se desentendiam de que a terça-feira de carnaval era dia útil e organizavam corsos para pedir a inclusão do carnaval no calendário de feriados.
Sentido político
Na cidade de Buenos Aires, o circuito oficial de murgas é organizado pela Comissão de Carnaval, que impõe regras para os espetáculos e organiza competições das quais muitas vezes depende o subsídio de cada grupo. Nas ruas há grades que separam o corso do público, que observa a festa do lado de fora dela.
Opositores desse modelo de desfile, o Movimento de Murgas Independentes agrupa organizações que fazem um trabalho mais vinculado à militância comunitária e se sustentam com recursos próprios e autogeridos. “Não é um requisito para ser parte do movimento, mas quase todas as murgas se organizam por assembleias e de maneira horizontal”, destaca Luz Quinteros, da Herederos de la Locura, que desfila no bairro portenho de Flores. “Os grupos do circuito oficial reproduzem uma lógica de hierarquias marcadas, com a figura do diretor de murga, por exemplo, com a qual não estamos de acordo”.
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A irmã de Luz, Laura Quinteros, lembra que quando o grupo começou a se organizar, em 1999, quando já havia a tensão social que culminou com a revolta popular em dezembro de 2001, após a quebra do país. “Era uma época mais complicada para sair às ruas. Por isso nascemos com uma ideia mais militante do bairro”.
Herederos surgiu entre a 1-11-14, uma das maiores favelas da capital argentina, e a parte sul de Flores, bairro de classe média de Buenos Aires. Edgar Godoy, que viu nascer a murga, conta que as assembleias populares organizadas nos bairros a partir da crise de 2001 uniu o grupo carnavalesco ao Centro Cultural Flores Sur, e ajudou a diminuir a distância entre as duas partes do bairro. “Alternávamos entre a parte sul de Flores e a 1-11-14 para fazer os ensaios. Cada domingo era em um lugar, o que foi uma dificuldade para a continuidade da murga, mas também ajudou a unir o lado mais marginalizado do bairro com o lado de classe média”, recorda.
Carnaval como forma de protesto
Este ano a Herederos, junto a outras organizações de trabalho territorial no bairro, reeditou o corso histórico de Flores, mas não pediu permissão ao circuito oficial para isso. “Como murga, não existimos para o Estado. Precisaríamos responder a várias exigências para as quais não estamos preparados financeiramente e também não nos interessa ideologicamente”, desafia Luz.
Aline Gatto Boueri/Opera Mundi
Grupo independente Mata Mufa, além das festas, também é usado para protestar contra temas como a violência policial
A insubordinação lhes custou alguns avisos da polícia, que veio impedir o corso de continuar em meio à apresentação de Herederos, com ameaças de levar o equipamento de som. Mesmo sob vaias do público, a apresentação terminou mais cedo, mas teve um caráter de protesto que marcou a segunda-feira de carnaval.
Algumas horas antes, como convidados, a Mata Mufa, que existe há sete anos e há cinco desfila em Ramos Mejía, na zona oeste da Grande Buenos Aires, havia entrado ao corso com uma demonstração de que não é só a alegria – ainda que seja uma parte importante – que faz o carnaval portenho. Sua apresentação denunciou que o irmão de Ruben Carballo, jovem assassinado em um show de rock em 2009 “pelas mãos da polícia”, também havia sido perseguido e preso após uma decisão judicial supostamente armada em represália aos reclamos do pai por justiça.
“A murga ajuda a formar uma rede de organizações comunitárias. Ensaiamos durante o ano inteiro e também fazemos apresentações fora do carnaval. Passamos pelas casas e convidamos os vizinhos, também a discutir as normas de convivência e uma outra forma de vínculo”, conta Camila Sposato, uma das integrantes da Mata Mufa.
Também integrante do circuito independente de murgas, a Mata Mufa funciona com recursos próprios e as decisões são tomadas em assembleias. “Independência e autogestão são as duas palavras-chave. Não se trata apenas de desfrutar o carnaval, mas também de que haja união e solidariedade entre as agrupações, e não disputa”, enfatiza Pablo Orlando, maquiagem no rosto, enquanto se prepara para mais um desfile.