Oswaldo Paiva está preocupado. A angústia surgiu quando alguns fios de cabelo branco começaram a se espalhar entre os castanhos, inclusive nas largas costeletas. É que o venezuelano, aos 65 anos, interpreta diariamente diante de centenas de pessoas um dos personagens mais importantes da história do país: o 'Libertador' Simón Bolívar. “Ele não pintava o cabelo, verdade? E eu agora já estou precisando pintar”, filosofa.
Daniella Cambaúva/Opera Mundi
Paiva interpreta o herói da libertação em Caracas: “Isso se tornou minha razão de vida, minha razão de ser: Bolívar”
A preocupação de Paiva não é injustificada. Bolívar é considerado o herói de libertação nacional dos venezuelanos: militar, lutou pela independência da Venezuela, da Colômbia, do Equador e Peru, e fundou a Bolívia. Nascido em 1783, em Caracas, é uma figura extremamente popular, cujo rosto estampa quadros, muros e postes espalhados por todo o país. Logo, qualquer diferença em sua aparência poderia ser notada. Além disso, esse foi o personagem que Paiva mais interpretou ao longo dos últimos 30 anos, o que já lhe rendeu algumas aparições em rede nacional de TV.
O intérprete de Bolívar recebeu Opera Mundi em uma das salas da Assembleia Nacional da Venezuela, sua “segunda casa”, em Caracas. Andar ao lado do “libertador” pelos corredores do prédio é uma tarefa desafiadora. Por onde passa, é cumprimentado, sendo chamando apenas pelo nome 'Bolívar'.
Paiva trabalha das 10h às 15h em uma das saídas do prédio que dá acesso à Praça Bolívar. Ele começou a trabalhar na Assembleia em 2012. Neste ano, o Palácio Federal Legislativo, construído em 1872, uma das principais atrações históricas da capital, decidiu abrir suas portas para visitação e “me deram a responsabilidade de ser o anfitrião, de convencer as pessoas a entrar”, conta.
Em julho deste ano, o presidente venezuelano, Hugo Chávez, apresentou o “verdadeiro rosto” de Simón Bolívar, uma nova imagem reconstruída graças à exumação de seus restos mortais feita em 2010. O novo rosto possui o tom da pele um pouco mais escuro, sobrancelhas mais fartas, cabelo mais escuro e nariz um pouco mais largo. Curiosamente, e por sorte, o rosto de Paiva se assemelha mais com o “novo” do que com o “antigo”, possivelmente por conta das horas diárias que passa trabalhando sob o sol de Caracas.
Além dos cabelos tingidos e dos 124 anos que o separam do verdadeiro Bolívar, Paiva nunca entrou para a política. Originário de La Guaira, no estado de Vargas, a 30 quilômetros da capital, sua mãe queria que fosse padre. O jovem chegou a entrar para o seminário, mas desistiu. Paiva se define como compositor, cantor, produtor musical e de televisão.
Como ator, iniciou a carreira na emissora venezuelana Radio Caracas Televisión, fazendo pequenos papeis em novelas. Os contratos eram para trabalhos com duração entre 20 e 30 capítulos. Finalmente interpretou Bolívar em 1983, ano do Bicentenário. À época, o canal estava na grade de programação da tevê aberta, mas, atualmente, funciona apenas como canal pago. “A coisa não era tão fácil. [Em 1983], depois de um casting, fui chamado para substituir um ator da Venezuela chamado Gustavo Rodriguez no papel do Bolívar. Tive que sair do teatro para ensaiar esse papel. Quando estávamos para estrear a obra, nacionalmente, o diretor e produtor se equivocou com o orçamento e tivemos que suspender tudo. E eu havia perdido seis meses”, ainda lamenta.
Daniella Cambaúva/Opera Mundi
Paiva por Paiva, na Assembleia Nacional: “coloquei minha vida pessoal em segundo plano” para interpretar Simón Bolívar
Foi quando decidiu levar às ruas o trabalho que havia preparado para a novela. A ideia surgiu, lembra ele, quando caminhava pela Praça Bolívar. Conseguiu uma roupa, fez uma adaptação e lá ficava todas as quintas-feiras. Desde então, Paiva estima ter feito quatro mil apresentações interpretando Bolívar.
“Havia muita resistência de pessoas que queriam preservar a praça. Depois, se acostumaram. Na época, alguns amigos me chamavam de 'o louco Paiva'. Isso se tornou minha razão de vida, minha razão de ser: Bolívar”.
O ponto alto de sua carreira, segundo ele, aconteceu em 1997, durante o ato de apresentação da Lei de reforma da Constituição, transmitido em cadeia nacional. Foi convidado pelo então deputado Darío Vivas, naquele momento filiado ao extinto MVR (Movimiento V República), para interpretar Bolívar, “Esse ato mudou minha vida. Comecei a receber muito mais trabalho”, diz.
O reconhecimento não veio apenas como Bolívar. A primeira peça de teatro escrita por Paiva no quinto bicentenário da chegada de Cristóvão Colombo a Santo Domingo, em 1992, recebeu prêmios de melhor texto e melhor ator.
Interpretando o Libertador, já recebeu convites para se apresentar em Cuba, Santo Domingo e na Colômbia. Na Venezuela, é chamado por universidades, hospitais e atualmente acompanha caravanas de visitantes na Assembleia.
A especialidade é a encenação dos últimos momentos de Bolívar, trecho que já foi veiculado pela emissora VTV (Venezolana de Televisión) diversas vezes. Seu sonho, antes de se aposentar, é gravar o epistolário político completo de Bolívar. “O que tenho contra é a idade. Como eu te disse, preciso pintar o cabelo”.
Vida pessoal
Quando questionado sobre a vida pessoal, responde: “é aí que está a coisa difícil. Coloquei minha vida pessoal em segundo plano”. Paiva casou-se uma vez, teve um filho. Está amasiado há doze anos. “Há resistência da minha mulher. Ela não apoia muito, mas não por ciúmes, mas porque queria que aproveitasse a aposentadoria com ela, mas estou sempre dedicado aos textos”.
A aposentadoria de Paiva, no entanto, não deve lhe afastar da televisão e do teatro. O intérprete de Bolívar faz planos para o futuro e um deles é interpretar Francisco de Miranda. “Não teria que usar maquiagem”, explica. Quer cantar suas próprias composições e atualmente tenta emplacar na televisão um projeto chamado La Ventana Mágica de Venezuela, uma série para crianças. Ele se considera um autodidata, um apaixonado pela educação. Ama a filosofia e planeja desenvolver métodos de ensino.
Na frente da Assembleia, apesar do calor de Caracas, Paiva veste o uniforme militar do século XVIII completo, com direito a botas pretas, calça comprida e uma blusa azul de manga longa. Andando entre a porta do prédio e a praça, convida as pessoas para entrar e, gentilmente, tira fotos. Não cobra nada por isso. Se não fosse a presença de um Bolívar naquele local, a existência daquela porta poderia passar despercebida em meio ao prédio e às inúmeras lojas que cercam a região.
“Posso falar de todas as fases do Libertador. Tenho um acervo de quase todos os poemas que ele escreveu. Em alguns momentos, tenho dúvidas se sou Bolívar ou se sou Paiva”, ri Paiva, distante do Libertador por apenas alguns fios grisalhos.
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