A maior organização de assistência humanitária na Turquia, que já destinou US$ 35 milhões aos refugiados sírios, tem sofrido duras pressões políticas e corre o risco de ser fechada pelo governo do presidente Recep Tayyip Erdogan.
“Se fecharmos, centenas de milhares de famílias sírias serão afetadas. É preciso que o governo pare de nos pressionar. Não nos envolvemos em intrigas políticas”, afirma Yusuf Yildirim, diretor do departamento internacional da organização humanitária KYM (Kimse Yok Mu).
Além das denúncias de acosso à ONG, a máquina governista na Turquia também enfrenta de acusações de perseguição à imprensa. País terá eleições gerais neste domingo, em pleito que escolherá o novo parlamento — a legenda situacionista AKP, com cerca de 40% das intenções de voto, busca a formação de uma maioria no Legislativo, que seria necessária para pôr em prática os planos de Erdogan de alterar a Constituição e tornar o país presidencialista.
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Fabíola Ortiz
Mulher síria anda em campo de refugiados no em Nizip, na Turquia
Há cerca de um ano e meio, Kimse Yok Mu, com sede na periferia de Istambul, convive com inúmeras inspeções de fiscais, auditores e agentes do governo turco que realizam inspeções em documentos, papéis e registros de todas as suas operações nos 113 países em que a ONG atua.
“Não acharam nenhuma irregularidade nas inspeções. Nós trabalhamos com transparência. Estão tentando provar que nós fazemos parte de uma organização terrorista e é por estas alegações que querem fechar a ONG”, explicou.
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Yildirim já foi o coordenador de assistência humanitária da organização e do conselho de diretores e hoje é o representante da KYM na América Latina. Em recente viagem ao Brasil, Yildirim conversou com Opera Mundi em São Paulo, analisou a pressão imigratória que há na Turquia e falou de seu receio em relação ao futuro da ONG.
Alvo de campanha de difamação
Além de sua sede em Istambul, KYM tem 31 escritórios e realiza atividades em mais de 80 cidades na Turquia e em outros 113 países. Criada em 2002, é a única organização não-governamental turca a ter o status consultivo do Ecosoc (Conselho Econômico e Social) das Nações Unidas. Desde 2013, atua como parceira da Acnur (Alto Comissariado da ONU para Refugiados).
A organização de assistência humanitária tem, entretanto, sofrido pressões diretas do presidente Erdogan para fechá-la e se tornou alvo de uma “campanha de difamação”, condenam os seus representantes.
Desde o ano passado, especula-se que políticos do governista AKP (Partido Justiça e Desenvolvimento, na sigla em turco), de Erdogan, planejam retirar o status de interesse público da ONG — o que significa impedir que a entidade receba doações sem ter que informar ou consultar o governo.
Fabíola Ortiz
Imagem do andar de estoques da sede da ONG turca KYM em Istambul
A ONG é acusada de uso indevido de recursos. Ela, por sua vez, contesta não haver nenhum argumento de base legal para retirar o status. Os representantes da KYM afirmam que conduzem suas operações de forma transparente e que nenhuma irregularidade foi encontrada em meio a várias auditorias.
A organização atua em desastres naturais com o envio de equipes especializadas para resgate como nas Filipinas, Haiti, Peru e mais recentemente no terremoto do Nepal, que matou 8 mil pessoas e deixou outros 10 mil feridos em abril deste ano.
“Agora dizem que nós apoiamos terroristas. Eu pergunto, são terroristas os refugiados sírios, os africanos e os asiáticos que nós ajudamos? O nosso perfil é apoiar pessoas necessitadas”, contestou Yildirim.
Em busca de irregularidades
As organizações na Turquia são auditadas por agentes fiscais a cada dois anos. Contudo, o diretor internacional da KYM reclama que sua sede foi vistoriada três vezes nos últimos 18 meses. “Sempre abrimos as portas aos oficiais do governo para verificarem nossas operações. Eles vêm em grupos e ficam cerca de três meses auditando e trabalhando na nossa sede dias inteiros”, salientou.
Os agentes do governo buscam notas fiscais de pagamento de impostos, além de fiscalizar todos os comprovantes de envio de ajuda humanitária e mantimentos.
A razão de tanta pressão e medidas que tendem a limitar o trabalho da ONG pode estar escondida numa disputa política que envolve o presidente Erdogan e um ex-aliado seu, o clérigo muçulmano Fethullah Gulen, 73, autoexilado na Pensilvânia, nos Estados Unidos, desde 1999. O religioso é fundador do movimento humanista pró-democracia Hizmet (serviço, em turco) que defende valores universais como o diálogo inter-religioso, liberdade de imprensa e de expressão. Hoje, Gullen é tido como o rival número um do presidente.
O clérigo e todas as atividades e iniciativas que tenham qualquer ligação com este movimento são acusados de integrarem um Estado paralelo e de conspiração política. KYM integra o chamado movimento Gullen.
“O governo está culpando o movimento Gullen por ser o responsável de investigar os esquemas de corrupção que o próprio governo estava envolvido. A nossa organização não tem nada a ver com isso”, disse.
O escândalo de corrupção a que Yildirim se refere são as notícias veiculadas pela imprensa crítica, em dezembro de 2013, que atingiram diretamente a alta cúpula do governo, inclusive o filho de Erdogan, Bilal, acusado de especulação no setor imobiliário. No dia 17 de dezembro daquele ano, três filhos de ministros foram presos por corrupção e um montante de US$ 4,5 milhões, provenientes de desvios, foi encontrado na casa de um diretor de um banco dentro de caixas de sapatos.
Atendimento a refugiados que não são acolhidos pelo governo
Todos os anos, a ONG consegue arrecadar entre US$ 25 e 30 milhões em doações para manter as suas atividades no mundo. “Não dependemos de nenhum apoio do governo, conseguimos recursos pelas nossas próprias campanhas”, frisou. Yildirim teme que a onda de ameaças e pressões políticas continue a aumentar este ano.
Além das constantes acusações, o dilema que vive a ONG é: caso seja desativada, deixará de dar assistência a praticamente dois terços das famílias sírias que ingressaram como refugiadas na Turquia e que não são acolhidas nos campos de refugiados mantidos pelo governo.
Reprodução/KYM
Situação de guerra civil na Síria já dura mais de quatro anos e deixou pelo menos 200 mil pessoas mortas
Há pouco mais de 20 campos de refugiados que abrigam sírios na Turquia onde vivem cerca de 220 mil pessoas. Algo por volta de 1,8 milhão de sírios estão espalhados pelo país e dependem de ajudas de ONGs, como a Kimse Yok Mu. A situação dos sírios que fugiram de seu país nesta que está sendo considerada pela ONU a maior emergência humanitária do mundo pode se deteriorar muito, caso o apoio humanitário cesse.
Desde o início do conflito na Síria, em 2011, KYM já destinou US$ 35 milhões em ajuda humanitária. “Entregamos às famílias necessitadas alimentos, roupas, cobertores, barracas, remédios e assistência medica. A crise na Síria ainda não terminou, muitos ainda estão cruzando as fronteiras”, explicou.
Yildirim admite que a situação não está sob controle, especialmente porque as outras organizações que também apoiavam os sírios estão pouco a pouco deixando de prestar auxílio em razão da falta de recursos.
No 'entre-fronteiras'
Na Turquia, há mais de um tipo de refugiados sírios, explicou Yildirim. Os que estão abrigados nos campos de refugiados e recebem apoio do governo e os que estão espalhados pelo país, amontoados em pequenos apartamentos, em tendas em áreas rurais e com restrito acesso a serviços públicos.
“O grande problema está fora dos campos, pois há cinco vezes mais sírios que não recebem ajuda do governo. Eles estão em diversas regiões, são quase 2 milhões e estão lutando para sobreviver”, descreveu.
Já não é mais possível dimensionar quantos sírios receberam ajuda humanitária pela KYM desde o início do conflito, admitiu Yildirim. Apenas em alimentos, há quatro anos são distribuídos diariamente refeições para cinco mil pessoas em caminhões portáteis – os food trucks.
Há cerca de seis meses, KYM fez uma pareceria com o UNHCR para fornecer às famílias cartões de débito com quantias em liras turcas que pudessem ser usados em compras. Nesta iniciativa piloto, 17 mil famílias sírias receberam cartões e um valor total de US$ 2 milhões foi destinado a este projeto piloto.
“Essa foi uma forma de fazer com que as famílias não se sentissem vitimadas. O valor para cada família varia de acordo com o número de filhos e de membros. Cadastramos as famílias e fixamos um valor de acordo com as necessidades de cada uma”, detalhou.
O mais urgente neste momento, segundo Yildirim, é prover assistência aos sírios que estão perto da fronteira mas que não ingressaram oficialmente na Turquia. Milhares de pessoas estão acampadas numa zona de “entre-fronteiras”.
“Há áreas entre a Turquia e a Síria que as pessoas saíram do território sírio, mas não exatamente cruzaram a fronteira e ficam numa área de segurança entre os dois países. Estamos enviando apoio às pessoas que ficam neste entre fronteiras. Quando iniciamos esse trabalho, havia 5 mil pessoas e agora já passaram de 20 mil”, disse.
Entre os sírios que ocupam esta zona de entre-fronteiras, há muitas crianças e mulheres. Nesta área de campos abertos, KYM montou banheiros portáteis e reservatórios de água — a ONG emprega atualmente 350 funcionários e conta com uma rede de 210 mil voluntários.
Yildirim estima que o número de imigrantes sírios continuará a crescer nos próximos meses e prevê que, em breve, haverá uma nova geração de sírios nascidos na Turquia. “Eles continuarão a entrar no país, não em tantas levas como antes, mas continuarão a vir. Grande parte das famílias sírias que chegaram a Turquia não voltará à sua terra natal. Muitos ficarão na Turquia”, destacou.
200 mil mortos em quatro anos
Existem mais de 3 milhões de sírios refugiados em países como Jordânia, Iraque, Egito e Líbano, além da Turquia, segundo as estimativas do Acnur, que classifica a situação como a maior emergência humanitária do século 21. Desde o início do conflito, mais da metade de toda a população do país foi forçada a deixar suas casas e fugir para sobreviver.
A República Árabe Síria enfrenta, desde março de 2011, uma guerra civil que já deixou, pelo menos, 200 mil mortos em quatro anos e destruiu a infraestrutura do país gerando uma crise humanitária na região, segundo o Observatório Sírio dos Direitos Humanos, sediado em Londres.