Apesar da resistência de setores no Ministério da Defesa e das forças armadas, o governo quer que as investigações da Comissão Nacional da Verdade, a ser criada em 2010, sejam depois levadas à Justiça. Embora seja cedo para se falar em punições aos militares responsáveis pelas torturas, mortes e desaparecimentos, já que isso ficará a cargo do Poder Judiciário, representantes do governo, do Congresso e da sociedade veem na iniciativa um passo importante do Estado brasileiro para reconhecer e reparar os crimes cometidos entre 1964 e 1984.
A comissão está prevista no terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), lançado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na última segunda-feira (21). Um grupo de trabalho com representantes dos ministérios da Justiça, Defesa, Casa Civil e Secretaria Especial de Direitos Humanos deverá mandar ao Congresso Nacional o projeto de lei que cria a comissão até abril.
Para o presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, Paulo Abrão Pires Júnior, os exemplos dos países vizinhos, principalmente da Argentina e do Chile, são paradigmáticos e devem servir de modelo para o Brasil. “Nós devemos, acima de tudo, buscar uma solução que seja peculiar ao processo histórico brasileiro e que leve em conta as nossas tradições e nossa capacidade de concertação social, mas não abrindo mão dos princípios da verdade, reparação e justiça”, disse ao Opera Mundi.
A Argentina e o Chile promoveram suas comissões mais cedo, poucos anos após o término das ditaduras e já iniciaram julgamentos de militares. Na avaliação da cientista política e pesquisadora da Unicamp, Glenda Mezarobba, uma das principais diferenças entre os processos do Brasil e dos dois vizinhos é que, aqui, a anistia foi uma bandeira da sociedade, enquanto na Argentina e no Chile os movimentos contra as ditaduras reivindicavam justiça desde o princípio. “Anistia remete a uma ideia de esquecimento”, destaca Glenda, que fez em sua tese de doutorado uma comparação entre as reparações pagas às vítimas dos regimes militares no Brasil, Argentina e Chile.
Embora essa não fosse a intenção dos movimentos sociais que lutaram pela anistia no Brasil, o governo militar acabou se apropriando da bandeira, concedendo a anistia em 1979 e impondo a interpretação de que ela deveria beneficiar tanto perseguidos quando perseguidores.
Glenda, no entanto, questiona essa tese. “A Lei de Anistia não garante a impunidade que os militares queriam. É compreensível que, no início, durante o governo Figueiredo (1979-1985), ninguém questionasse isso pela pressão ainda exercida pelos militares. Mas hoje isso certamente pode ser revisto na justiça”, afirma. Para ela, a lei ainda não foi testada nos tribunais – se fosse, já haveria mais condenações.
Segundo ela, 2010 pode trazer uma grande novidade nessa questão, pois o STF (Supremo Tribunal Federal) deverá se posicionar sobre uma ação da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) pedindo uma revisão da lei. Na ação, a OAB sustenta que as violações dos direitos humanos constituem crimes de lesa-humanidade que, segundo acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário, não prescrevem e devem ser julgados.
Além disso, diz Glenda, “a jurisprudência internacional é bastante sólida em dizer que um Estado não pode se auto-anistiar”. Paulo Pires, da Comissão de Anistia, completa: “há hoje um entendimento consolidado da Corte Interamericana de Direitos Humanos de que a tortura é crime imprescritível e não passível de anistia quando praticada de forma sistemática”.
A cientista política também lembra que no Chile, embora o general Augusto Pinochet tenha feito uma transição negociada, mantendo inclusive cargos no Executivo e no Legislativo, após deixar a presidência foi julgado e condenado à prisão domiciliar. “Na Argentina, então, nem se fala, eles revogaram a lei de anistia e estão julgando e condenando militares por crimes da ditadura”, lembra.
Punições também no Brasil?
Pires tem a expectativa de que a Comissão da Verdade necessariamente desemboque não só na elucidação dos fatos, mas também à Justiça. “Não haverá reconciliação enquanto não se buscar toda a verdade, reparar todas as vítimas e permitir o processamento de todos os crimes”.
Ele acredita que é possível vencer as possíveis resistências do Ministério da Defesa na elaboração do projeto de lei que criará a Comissão da Verdade. “Temos que ter como premissa e deixar isso muito claro às forças armadas, que toda e qualquer apuração não se dirigirá a ferir a honra e o prestígio das instituições, mas sim a responsabilizar os agentes que, à margem da legalidade, cometeram crimes”, afirmou. “É um passado que não devemos esconder, mas sempre lembrar para que não se repita”.
A presidente da ONG Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro, Cecília Coimbra, diz ter esperança que os trabalhos da comissão sejam levados a julgamento. “O governo não faz mais do que a sua obrigação, mas reconhecemos que é um avanço, embora ainda pequeno. Esperamos que continuem nessa direção e que se chegue a punições, vamos continuar pressionando para isso”.
Ela criticou a atuação de grupos dentro das forças armadas e, inclusive, do ministro da Defesa, Nelson Jobim, contra a criação da comissão. “Era para se chamar Comissão da Verdade e da Justiça, mas infelizmente o governo não teve força suficiente para aprovar dessa forma”.
O Deputado Federal Luiz Couto (PT/PB), presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, é favorável à criação da Comissão da Verdade e diz que trabalhará para sua aprovação, mas prevê dificuldades para votar o texto, pois 2010 é ano eleitoral. Ele avalia que, se o texto for mesmo encaminhado à câmara até abril, é possível votar ainda em 2010. “Mas acho que o governo poderia mandar com pedido de urgência, para garantir, e também trabalhe firme para a aprovação”, disse.
“Nós queremos é a reconciliação com a nação. Tortura é imprescritível, quem agiu tem que ter algum tipo de punição, nem que seja um pedido de desculpas ou perdão às famílias e ao país”, disse Couto.
Pires também se manifestou nesse sentido, destacando que a decisão do ano passado da Justiça de São Paulo, que declarou que o coronel de reserva Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-Codi entre 1970 e 1974, como torturador, foi uma grande vitória da família de Maria Amélia de Almeida Teles, que entrou com a ação. O processo contra Ustra não pedia nenhuma punição nem indenização em dinheiro, mas somente que ele fosse declarado torturador. O coronel Ustra nega as acusações e afirma que recorreu da decisão, que será julgada em 2010 pelo STF, mas não quis falar com a reportagem do Opera Mundi.
Pires espera, porém, que os trabalhos da Comissão da Verdade não sirvam de justificativa para que os demais processos em todo o país, como o contra o coronel Ustra, sejam paralisados. “Isso seria um atraso em relação a esse belo exemplo, tudo isso tem que correr em paralelo”.
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