A uma hora de carro de Phoenix, capital do Arizona, rumo ao sul, fica a cidade de Florence, onde cerca de metade dos 17 mil habitantes está atrás das grades. É difícil imaginar que esta cidade pacata, no meio do deserto, esteja na linha de frente da guerra dos Estados Unidos contra a imigração ilegal.
Cerca de 10% dos estimados 500 mil imigrantes ilegais detidos em 2007 nos EUA acabaram em um dos quatro centros de detenção dedicados a eles em Florence. Grupos de defesa dos direitos humanos denunciam numerosos abusos nestes e em outros centros espalhados pelo país, incluindo espancamento, confinamento em solitária e falta de cuidados médicos, por vezes levando à morte.
Numa oportunidade rara, o Opera Mundi teve acesso a uma dessas instalações, o Centro de Processamento de Serviços de Florence, um antigo campo de prisioneiros nazistas da 2ª Guerra Mundial onde centenas de marielitos – refugiados cubanos – ficaram detidos na década de 1980. O CPS de Florence é também um dos poucos centros de detenção administrados diretamente pela Vigilância de Imigração e Alfândega dos EUA (ICE, na sigla em inglês), órgão do Departamento de Segurança Interna encarregado de garantir o cumprimento das leis do setor.
O complexo penitenciário é formado por uma série interminável de edifícios baixos de tijolos protegidos por duas cercas de arame farpado de 10 metros de altura, abrigando cerca de 400 detentos, entre eles brasileiros. A maioria chega aqui depois de ser capturada em patrulhas ao longo da fronteira com o México e permanece detida por 37 dias em média, ou dez meses no caso de pedidos de asilo, à maneira do que ocorre no resto do país. E a maioria acaba deportada.
“Independentemente do caso, garantimos que todos tenham pelo menos uma hora por dia para respirar ar fresco”, diz John Crowther, o diretor da prisão, ao apontar para um grupo de detentos acorrentados que vestiam uniformes vermelhos reluzentes. Crowther sublinha que, conforme as normas da ICE, os prisioneiros que já cumpriram penas criminais (Nível 3, de uniforme vermelho) nunca são misturados aos outros.
Veja aqui as fotos do CPS de Florence
Eles voltavam da área de recreação, constituída por um pequeno campo de terra de futebol americano ao lado de uma quadra coberta de basquete e vôlei com alguns aparelhos de ginástica sem pesos. Na entrada, uma placa oferece “aulas de gerenciamento de raiva” gratuitas, com espaço para sete detentos por sessão.
Os prisioneiros passam a maior parte do tempo nos alojamentos de tijolos, cada um abrigando 64 pessoas sob vigilância constante. Eles dormem em beliches de ferro enfileirados num quarto amplo. No aposento ao lado, podem assistir à TV ou jogar baralho até as 22h30, quando as luzes são apagadas. “Podemos falar alguma coisa?”, perguntaram temerosos alguns detentos quando entrei. Tive de responder que as autoridades não permitiam.
Acomodações em Florence, Arizona
Sistema não é “perfeito”
De volta ao escritório central da prisão, Katrina Kate, diretora da ICE para o Arizona, reconhece que esse sistema de detenção não é perfeito. Ela diz que os processos de apelação podem levar meses e que manter os detentos perto de suas famílias não é uma preocupação, pois distribuí-los é como “encaixar as peças de um quebra-cabeça”.
Mas Kate negou veementemente as denúncias de abusos generalizados. “Seguimos todas as normas da ICE, esta é a única coisa que importa. O governo dita as regras, não nós”. A diretora insistiu que as instalações são monitoradas constantemente para garantir o cumprimento das normas, mas admitiu que isso nem sempre é feito pelo governo, mas por companhias privadas contratadas pela ICE.
Direitos humanos
No entanto, Jorge Bustamante, relator especial da ONU (Organização das Nações Unidas) para os direitos humanos dos imigrantes, acusa a ICE de violar as próprias normas de detenção. “Os problemas são a regra, não a exceção”, afirma. “O abuso verbal por parte dos guardas, os espancamentos e a péssima alimentação são comuns. Os detentos são separados da família e não têm nem sequer o direito de ser atendidos por um advogado gratuito. É terrível”.
Bustamente argumenta que uma das principais causas dessa situação é o fato de o sistema de detenção ter crescido mais que três vezes desde o início da década, quando começou a prisão de imigrantes ilegais. Outra razão é a terceirização da maior parte dos mais de 300 centros de detenção nas mãos de empresas privadas e xerifes locais, o que torna o sistema difícil – se não impossível – de monitorar.
O escritório norte-americano da Anistia Internacional endossou essas acusações num relatório divulgado há poucas semanas. A AI denunciou que 74 pessoas morreram em centros de detenção de imigrantes nos últimos cinco anos por falta de cuidados médicos. E que candidatos a imigrantes que têm o pedido rejeitado “podem definhar na prisão indefinidamente se seus países de origem não estiverem dispostos a aceitá-los de volta ou não mantiverem relações diplomáticas” com os Estados Unidos.
O relatório, intitulado “Presos sem justiça: a detenção da imigração nos Estados Unidos”, acrescentou que, entre os imigrantes ilegais detidos durante anos, estão “candidatos a asilo, sobreviventes de tortura, vítimas de contrabando humano, residentes permanentes legais de longa data e pais de crianças cidadãs dos Estados Unidos”. O documento defendeu o uso de alternativas à detenção que, segundo a AI, custam apenas 12 dólares por ano por pessoa, contra 95 dólares para cada detento.
Esperança
Qualquer que seja o verdadeiro alcance dos abusos, é cada vez maior a consciência de que mudanças são necessárias. Muitos depositam as esperanças na recém-nomeada secretária de Segurança Interna, a ex-governadora do Arizona Janet Napolitano, também responsável por supervisionar a ICE.
O primeiro sinal de mudança surgiu no mês passado, quando 28 trabalhadores detidos numa operação de agentes de imigração foram libertados e ganharam permissão para trabalhar nos EUA. A operação na fábrica da Yamato Engine Specialists em Bellingham, no Estado de Washington, foi a primeira prisão em massa de imigrantes desde a posse do presidente Barack Obama, em janeiro. No início, a incursão pareceu contradizer sua política de reprimir os empregadores de imigrantes ilegais, e não os trabalhadores.
Mas poucos ativistas pró-direitos humanos esperam reformas radicais. “Napolitano consultou sua nova equipe para saber se ela está usando alternativas à detenção satisfatoriamente”, explica Judy Greene, proeminente advogada norte-americana especializada em imigração. “Ela certamente será mais sensível à pressão do público quanto às condições nos centros de detenção, mas as pessoas ainda temem ser sobrepujadas pelos imigrantes ilegais, e essa é a ideia que prevalece”.
Leia a segunda parte da reportagem especial:
Detentos relatam episódios de violência e arbitrariedade
*Texto e fotos
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