Neste período do ano, muitos festivais religiosos são celebrados na Índia. As pujas — adorações hindus — brotam nos altares das ruas de todo o país e os seguidores do jainismo começam seus jejuns rituais. Os muçulmanos, por sua vez, celebram o Eid, que marca o fim do jejum no Ramadã, sacrificando cordeiros e vacas para comemorar a fé de Abraão em seu Deus.
Entretanto, nas últimas semanas, uma série de novas medidas patrocinadas pelo governo do primeiro-ministro, Narendra Modi, tem fechado açougues e proibido o consumo de carnes, retringindo restaurantes de vender até frango na manteiga em alguns distritos indianos.
Na noite da última segunda-feira, em Dadri, uma pequena aldeia de 50 quilômetros ao norte de Nova Délhi, o muçulmano Aklaq Mohammed foi morto após ser linchado por 200 pessoas. Seu filho Danish, de 22 anos, também foi atacado e permanece desde então em coma em um hospital. Tudo começou em um templo hindu perto da sua casa, quando alguém acusou Mohammed de ter sacrificado uma vaca perto de fiéis reunidos. O pai de família foi sacrificado a golpes e pedradas em frente a sua filha mais nova e sua mãe, que foram igualmente agredidas.
Wikicommons
Mercado de carne na cidade de Calcutá
No último dia 25 de setembro no estado de Jharkhand, onde a população é majoritariamente indígena e carnívora, um pedaço de carne apareceu na entrada de um templo hindu na comunidade de Doranda. O confronto que se seguiu entre hindus e muçulmanos teve um saldo de dois mortos e uma dezena de feridos.
Tensão ao redor do país
Em anos anteriores, não era necessária essa pressão de proibição no consumo de carne. Os açougueiros fechavam um ou dois dias suas lojas. Desta vez, segundo a norma promulgada pelos governos dos estados de Haryana e de Maharashtra, esses estabelecimentos foram forçados a fechar por oito dias.
Em Mumbai, a cidade mais populosa do país e sede dos estúdios cinematográficos de Bollywood, há polêmica contra as proibições. O ator Rishi Kapoor, lenda do cinema e pai de um dos atores mais populares da atualidade, utilizou sua conta no Twitter para criticar o governo desde que foram aprovadas as sanções em Maharashtra. Identificando-se como hindu e consumidor de carne, Kapoor expressou sua desaprovação perguntando aos políticos: “Como equiparar a religião à comida?”. Nos dias seguintes, recebeu diversas ameaças.
Reprodução/India Hungame
Rishi e seu filho Ranbir Kapoor: críticas ao posicionamento do governo e ameaças
O ministro da Cultura, Mahesh Sharma, disse há duas semanas ao canal de televisão Índia Today que queria “limpar a Índia de influências ocidentais” e que, no caso da proibição da carne, se “o sacrifício de uns tantos ajuda a sustentar os sentimentos religiosos de um setor da sociedade, não há mal nisso”.
Em outros estados, as disputas dos hindus com a população de fé islâmica pela matança de bovinos também têm sido constantes. No estado de Kashmir, de maioria muçulmana, essa proibição gerou tensão após entrar em vigor, há dez dias. A medida segue instruções do governo local, controlado pelo partido do primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, o mesmo que lidera os outros estados e cidades onde há proibições do gênero vigentes.
Por isso, talvez, a proibição não aconteça em todos os lugares. Na cidade de Calcutá, governada por um partido regional, os muçulmanos celebraram o Eid sem contratempos. “Estivemos com meu irmão e por sorte o dinheiro desse ano foi suficiente para matar uma vaca e desfrutar da festa juntos”, conta a Opera Mundi Neesar Mohammed, um profissional de tecnologia, muçulmano e pai de dois filhos. Os açougueiros do mais antigo mercado de carne do leste da Índia tampouco tiveram problemas, mas preferem não comentar a proibição em outras regiões.
NULL
NULL
O tabu da carne e a fé em Mahoma
De acordo com o historiador Dwijendra Narayan Jha, esta proibição tem origem recente, no século XIX, quando alguns comerciantes da casta brahmin decidiram que aqueles que comiam carne bovina eram “intocáveis”.
Jha publicou um livro sobre isso há 15 anos, O mito da vaca sagrada, que lhe custou andar escondido pelas salas da Universidade de Délhi durante alguns anos, protegido pela polícia. Mas Jha provou com documentos históricos que os hindus, os jainas e até os budistas consumiram carne de vaca e de búfalo durante milênios sem considerar que isso fosse pecado.
A carne vermelha é um ingrediente essencial da dieta de 15% da população (muçulmana), não somente pela fé ou por seu valor nutritivo, mas também por seu custo baixo se comparada ao frango e ao peixe fresco.
A ironia econômica
A milhares de quilômetros da disputa em Mumbai, em Délhi ou em Kashmir, há uma guerra diferente gerada pela proibição, por exemplo, no estado de Meghalaya, fronteira com Bangladesh.
“Os burocratas estão em guerra para ver quem é designado para trabalhar nessa fronteira. Uma pessoa pode se tornar milionária com o tráfico ilícito de gado”, explica ao Opera Mundi John Karshiing, porta-voz do Grande Conselho de Chefes do povoado Khasi, de cujas montanhas descem a cada noite centenas de animais para serem vendidos no país vizinho (de maioria muçulmana).
Wikicommons
Exportações de carne deram lucros milionários ao Estado indiano
Segundo a legislação, para os criadores de gado e os vendedores de carne “é proibida a venda nos países vizinhos”, completa Karshiing. O curioso do caso começa a aparecer então, porque a Índia é o primeiro exportador de carne bovina e búfalo para consumo humano, comercializando 23,5 % da carne no mundo.
Tanto que, até agora em 2015, ao menos 2,4 milhões de toneladas de carne foram exportadas da Índia, quantia superior as 2 milhões de toneladas que saíram do Brasil, o segundo colocado no ranking de países exportadores. Trata-se de um negócio que, no ano passado, deu lucros de US$ 4,5 milhões à Índia.
Com essa dupla moral em relação a vacas e religiões, o governo de Narendra Modi ressaltou há uma semana seu “respeito por todas as religiões”. No setor mais liberal da sociedade, inclusive os meios de comunicação tomaram partido e, em um caso peculiar, o Times of India (o diário com maior circulação do mundo) lançou uma campanha para “proibir as proibições”. A Corte Suprema escolheu não intervir agora, deixando nas mãos das cortes distritais.
Na Índia, onde pecados da carne são ainda assunto de Estado, o fanatismo religioso parece estar conseguindo as leis para legitimar suas ações.