Sexta-feira, 11 de julho de 2025
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Maria Deflina Argueta, 61 anos, seria mais uma camponesa e artesã do vilarejo El Mozote, em El Salvador, não fosse sua determinação de seguir contando a história que fez de seu povoado natal cenário do mais sangrento massacre contemporâneo da América Latina, com quase mil mortos. Em apenas três dias, a partir de 11 de dezembro de 1981, o batalhão de infantaria Atlácatl, das Forças Armadas salvadorenhas, treinado pelo exército dos Estados Unidos, interrogou sob tortura, violentou, matou e queimou os corpos da população de El Mozote e outras pequenas vilas rurais ao norte do Estado de Morazán. Entre os assassinados, estavam mais de 400 crianças.

O pequeno país centro americano (do tamanho do Estado de Sergipe) vivia o primeiro ano de uma guerra civil que durou 12 anos. Os oficiais alegavam que essa população camponesa era colaboradora da guerrilha, que tentava tomar o poder pelas armas depois de décadas de repressão política, extermínio de forças opositoras e eleições fraudulentas. “É muito duro falar sobre a nossa história, mas não queremos que isso caia no esquecimento’”, afirma Maria Delfina, que integra com outras sete mulheres o Comitê Histórico de Guias Locais, que atende aos turistas na praça onde o batalhão comandando pelo coronel José Domingo Monterrosa cumpriu a ordem de deixar “terra arrasada”.

Maria Delfina e seu primogênito somente não engrossaram os números do massacre de El Mozote porque um ano antes se haviam refugiado na vizinha Honduras. Mãe e filho e tantos outros moradores dessa zona deixaram El Salvador assustados com a perseguição e execução de civis pelas Forças Armadas e o esquadrão da morte, responsável pelo assassinato de Monsenhor Romero, então arcebispo de San Salvador e insistente crítico e denunciante em suas homilias, entrevistas e programas de rádio das arbitrariedades do Estado salvadorenho contra todo tipo de oposição política.

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Foi por meio da única sobrevivente conhecida do massacre, Rufina Amaya, que Maria Delfina foi informada, no exílio em Honduras, sobre o que tinha passado em El Mozote. “No meu país, tinham Rufina como louca. Até que a comunidade internacional lhe deu atenção, até que defensores dos direitos humanos e jornalistas estrangeiros chegaram ao lugar e começaram a encontrar os esqueletos ou o que tinha sobrado deles. Toda a atrocidade que Rufina contava se confirmava”.

A camponesa Rufina, então com 38 anos, fugiu da tortura e da morte andando de quatro, rompendo parte de seu vestido, camuflada entre os animais do povoado. As mulheres mais jovens tinham sido violadas e mortas. Rufina era a última da fila de mulheres mais velhas, que os oficiais organizaram para matar uma a uma. Numa distração de seus algozes, ela saiu da fila e se escondeu. De trás de uma árvore, podia escutar os planos macabros do batalhão: “Já terminamos de matar os homens e as mulheres, agora só falta esse montão de crianças que ficaram trancadas”. Os oficiais haviam confinado as crianças separadas de seus pais e mães. O filho caçula de Rufina, de 8 meses, ainda mamava no peito. Os oficiais mataram também a seus outros três filhos e seu marido.

Rita Camacho

Praça onde o batalhão comandando pelo coronel José Domingo Monterrosa cumpriu a ordem de deixar “terra arrasada”

Maria Deflina Argueta seria mais uma camponesa e artesã do vilarejo El Mozote não fosse sua determinação de seguir contando a história do mais sangrento massacre contemporâneo da América Latina

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Foram oito dias em fuga, assustada, com fome e com sede, encontrando em seu caminho os corpos carbonizados de seus vizinhos. Até que já quase sem forças e convencida de que os oficiais tinham deixado a zona, Rufina se aproximou da estrada e avistou a uma conhecida que vinha caminhando com a filha pequena. Eram parentes de uma família que também havia morrido no massacre. Foi Rufina quem lhes deu a notícia. “Chorei com essa família toda aquela noite”, conta em um de seus depoimentos.

Quinze dias depois do massacre, Rufina deu uma entrevista a estrangeiros (supostamente defensores de direitos humanos) que ela não sabia precisar quem eram. Esse grupo a acompanhou a El Mozote para tentar encontrar seus filhos: “Vimos as cabeças e os cadáveres queimados. Não era possível reconhecê-los. O convento estava cheio de mortos. Eu queria encontrar meus filhos, mas só encontrei as camisas todas queimadas”, relata Rufina.

New York Times e o Washington Post publicaram fotos e textos de seus correspondentes na América Central sobre o massacre. Mas, assim como Rufina, foram acusados de mentirosos. O governo salvadorenho atribuía a notícia a “exageros de jornalistas de tendência comunista”. No ano seguinte, os Estados Unidos, que igualmente fizeram vistas grossas ao ocorrido, renovaram seu aporte financeiro à guerra, que deixou mais de 70 mil mortos.

Rita Camacho

Maria Deflina Argueta seria mais uma camponesa e artesã do vilarejo El Mozote não fosse sua determinação de seguir contando a história do mais sangrento massacre contemporâneo da América Latina

Em 1990, com o país ainda em guerra, e acompanhada de outras tantas famílias que se haviam refugiado em Honduras, Maria Delfina decide voltar e repovoar sua terra natal. Nesse grupo, regressava também a sobrevivente Rufina, que seguiu denunciando o massacre em entrevistas, em vídeos, em livros: “Sinto um pouco de temor de falar de tudo isso. Mas ao mesmo tempo reflito que meus filhos morreram inocentemente. Por que vou sentir medo de dizer a verdade? Foi uma realidade o que fizeram e temos que ser fortes para dizer. Hoje conto a história, mas naquele momento eu não era capaz. Eu sentia um nó e uma dor no coração que nem falar eu podia. O único que eu fazia era chorar”, desabafava Rufina em seus depoimentos.

Somente depois dos acordos de paz que pôs fim à guerra, em 1992, teve início a exumação dos corpos em El Mozote, apoiada principalmente pela Equipe Argentina de Antropologia Forense. A Lei de Anistia impedia que qualquer pessoa fosse acusada do massacre. No ano passado, com a decretação de insconstitucionalidade da lei, começaram a surgir as primeiras tentativas de estabelecer culpados e novos pedidos judiciais de exumação. O comandante do batalhão autor do massacre, coronel Monterrosa, foi executado pela guerrilha numa emboscada, em 1983. Dez anos depois, um informe da Comissão da Verdade das Nações Unidas reconheceu a responsabilidades dele no massacre.

Rufina morreu de parada cardíaca em 2007, aos 64 anos. “Nós sabíamos que o sofrimento dela tinha sido muito grande. Que ela não ia durar muito, sua saúde estava complicada. E, em 2003, resolvemos formar o Comitê Histórico para seguir contando essa história”, explica Maria Delfina, diante do Memorial às Vítimas, onde cada placa de granito traz o nome e a idade das vítimas já identificadas. “Nosso trabalho é para garantir que El Mozote nunca mais se repita”.