A sucessão de Fidel Castro, entre 2006 e 2008, foi recebida em muitos países e na mídia como um processo que caminharia “naturalmente” para a adoção de medidas liberalizantes e concessões ao capitalismo. No entanto, a “demora” ou mesmo a negação disto foi tratada como surpresa pelos mesmos setores. A verdade que muitos desconsideram, segundo Janette Habel, é que existe uma complexa correlação interna de forças em Cuba que puxam para direções distintas ou até opostas. Nem mesmo os irmãos Fidel e Raúl têm posições semelhantes em vários assuntos. Na segunda parte da entrevista, a cientista política analisa os diferentes setores e interesses na sociedade cubana que vão definir o futuro da ilha.
Como a senhora vê o cenário da sucessão?
As coisas não estão muito claras no momento. A transição de 2006, quando Fidel Castro adoeceu, foi perfeitamente controlada. Mas, mesmo após a renúncia dele a quase todos os cargos, em 2008 (com exceção da Secretaria do PCC – Partido Comunista de Cuba), Fidel está sempre presente, e sua saúde parece estar melhor. Com 83 anos, ele vem participando dos debates por meio de suas “Reflexões”, artigos publicados pelo jornal Granma e na internet. Nestes textos, nem sempre ele concorda com o irmão, o que provoca discussões sobre as diferenças entre os “raulistas” e os “fidelistas”. Mas, na verdade, ninguém sabe exatamente quais são os desacordos entre os dois.
Podemos distinguir entre as diferentes correntes políticas no interior do estado?
Visto do exterior, não é coisa fácil, pois a retórica oficial esconde as divergências. Mas é óbvio que o PCC é muito heterogêneo. O sociólogo cubano Haroldo Dilla identifica três correntes na elite política. Primeiro, há as personalidades históricas ainda ativas (Raúl Castro é a figura-chave). Elas são a favor de uma liberalização econômica ampla e defendem um maior controle político garantido pelas forças armadas. Uma segunda área seria composta por jovens, relacionados com dirigentes econômicos e alguns centros de pesquisa. Este grupo foi simbolizado pelo ex-vice-presidente Carlos Lage e o ministro da Cultura e membro do Politburo, Abel Prieto, ainda no cargo. Eles são a favor de uma maior flexibilidade política e maior contato com os líderes latino-americanos, especialmente o presidente venezuelano, Hugo Chávez. Finalmente, o terceiro setor é o mais conservador. São os que consideram que as reformas só são aceitáveis se o PCC puder controlá-las. O representante desta tendência seria o primeiro vice-presidente, José Ramón Machado Ventura, de 78 anos. Nos termos da Constituição, ele deveria substituir Raúl Castro.
Nesse equilíbrio de forças, qual é o peso dos militares?
As forças armadas cubanas são, mais do que nunca, o centro das instituições. É preciso lembrar que Raúl Castro foi ministro da Defesa durante quase meio século. Hoje, as forças armadas controlam, direta ou indiretamente, dois terços da economia. São também a favor, na maioria, de dar mais espaço para o mercado e exigir mais disciplina para aumentar a competitividade. Além de promover vários militares durante a mudança de governo, em março 2009, Raúl nomeou o coronel Armando Emílio Perez, um dos líderes do “aperfeiçoamento de empresas”, como vice-ministro da Economia.
Qual é a importância deste “aperfeiçoamento de empresas”?
Já faz muito tempo que o “aperfeiçoamento de empresas” foi introduzido pelos empresários originados das forças armadas. É um sistema de gestão aplicado nas empresas cubanas, marcado pela busca do bom desempenho e da rentabilidade. Eles têm o direito de reduzir o pessoal, e implantar um sistema de pagamento e remuneração associado aos resultados. Em agosto de 2007, 797 empresas de um total de 2.732 (na maior parte, do setor público), aplicavam as normas do “aperfeiçoamento de empresas”. Para Raúl Castro, a disciplina do exército parece a melhor maneira para que Cuba possa enfrentar seu grande desafio: reformar sem desestabilizar.
Como a juventude e a sociedade civil se expressam diante deste desafio?
A partir da década de 1990, uma sociedade civil embrionária surgiu, e ficou reforçada pela chegada de Internet, onde se expressam círculos intelectuais e militantes. Em 2007, durante um episódio chamado “guerra de e-mails”, centenas de intelectuais e artistas protestaram contra a transmissão de um programa de televisão complacente com os velhos responsáveis pela pior época da censura, a chamada “década cinza”, durante os anos 70. Naquele mesmo ano, as 5 mil reuniões organizadas em centros de trabalho permitiram às pessoas expressar o mal-estar sobre muitos problemas econômicos, como a desigualdade no acesso a moedas estrangeiras, as dificuldades no transporte público, a falta de médicos e a corrupção.
Aliás, Raúl Castro tem incentivado essas críticas. De maneira geral, as discussões estão mais abertas, tem muitos debates abertos organizados na ilha, como os da revista Temas. Mas ainda há um enorme fosso entre a retórica oficial e a sensibilidade das gerações que nasceram no final do século 20. Mesmo os jovens politicamente ortodoxos têm maneiras diferentes de pensar não só a Revolução, mas a sociedade como um todo.
Que tipo de exigências eles fazem?
Eles pedem uma mudança, mas não querem ruptura. Reivindicam uma democracia mais participativa e uma maior liberdade econômica para trabalhadores independentes, agricultores, comerciantes e artesãos. Mas eles querem manter o controle estatal sobre setores estratégicos e preservar as conquistas sociais. Essas demandas são expressadas por meio dos jornais, da Temas, da Internet, em círculos de militantes, na universidade ou em associações, como o Centro Martin Luther King. Estas novas maneiras de participar nem sempre são bem-vindas. O regime de Fidel sempre viu com desconfiança qualquer expressão da autonomia social com uma dimensão política, mesmo se fosse para a esquerda ou até revolucionária. Isso tem uma explicação: o Estado cubano quer proteger sua soberania nacional. Por isso, denuncia as tentativas de interferência por certas ONGs americanas. Mas esses limites e controles impostos sobre a sociedade cubana são difíceis de suportar para os mais novos.
Leia a primeira parte:
Cuba vive desafio de reformar sem desestabilizar
Leia a terceira parte:
Reformistas tomam Vietnã como modelo, apesar de diferenças
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