“Há quantos quilos a gente não se vê?”. É com esta pergunta, acompanhada de uma gargalhada, que Marco Rascón cumprimenta um velho amigo que encontra depois de muito tempo. “Não vale contar em anos. Os quilos, pelo menos, são sinônimo de prazer”, diz ele, levando a mão à barriga e sublinhando que sempre soube experimentar o lado saboroso da vida.
O único problema com os quilinhos a mais é que ficaria mais difícil hoje vestir o figurino que lhe deu fama, o de Superbarrio Gómez, ídolo das classes populares mexicanas nos anos 80 e 90. Aproximando-se dos 60 anos, ele trocou a fantasia vermelha e amarela por um avental branco de chef de cozinha, com o qual aparece todas as noites no seu restaurante Peces (peixes), no sul da capital mexicana.
Lamia Oualalou
A história começa em 1985, alguns dias após o terremoto que devastou a Cidade do México, deixando dezenas de milhares de desabrigados. Antes da tragédia, Marco Rascón havia começado a trabalhar nos bairros populares do centro da cidade: uma nova vida depois de anos de militância precoce na luta armada em um núcleo guerrilheiro no estado de Chihuahua.
“Participei de três assaltos a banco. Nosso grupo era constituído de 15 pessoas. Cinco morreram e o resto foi para a cadeia”, lembra-se, tomando um gole de vinho espanhol. Ele tinha 19 anos quando foi preso, em 1972. “Alguns guerrilheiros saíram [da prisão] após o sequestro do cônsul norte-americano, em troca de presos políticos expulsos para Cuba. Depois, queriam que a operação se repetisse com um diplomata inglês, mas o governo quis nos mandar para a Coreia do Norte. A gente recusou: melhor ficar preso”, conta o chef.
Ao sair da prisão, em 1975, Marco opta pelo jornalismo militante, na revista “Punto Critico”. É a época do México paradoxal: o governo organiza a repressão contra os comunistas dentro do país, mas abre as portas aos exilados que fogem das ditaduras latino-americanas. Com o jornalismo, o jovem militante procura uma visão menos dogmática da sociedade, “marxista, mas concreta”.
Enquanto a esquerda tradicional tem apoio nas periferias, onde ajuda na adaptação dos camponeses recém instalados, o centro da capital fica sob controle do onipotente Partido Revolucionário Institucional, o PRI, então no poder desde 1929. “Nossa ideia era reivindicar o conceito de bairro, que era visto de maneira muito pejorativa pela elite, mas para nós constituía uma unidade cultural e política, com experiências próprias”, lembra Marco. Mas isso demorou a se estabelecer, já que o PRI não deixava nenhum espaço para os movimentos sociais.
Em 19 de setembro de 1985, às sete da manhã, um terremoto de 8,1 graus na escala de Richter abala a capital e o poder do partido. O governo do então presidente Miguel de la Madrid nunca reconheceu o número real de mortos, que ultrapassou 35 mil. O desastre deixa um resultado desolador: mais de 30 mil prédios totalmente destruídos e cerca de 70 mil, parcialmente afetados. A população não tem nada para comer nem lugar para dormir. “De repente, eles perceberam que aquele sistema político feito de autoritarismo, clientelismo e corrupção não funcionava”, diz Marco.
É então que os militantes aproveitam o vazio de poder para criar a “coordenadoria única de vítimas do terremoto de 1985”, que se transforma rapidamente em “Assembleias de Bairros”. Montam restaurantes para alimentar os “chilangos”, como são chamados os habitantes da Cidade do México, e pressionam o governo para reconstruir casas populares, organizando três a quatro manifestações no centro da cidade por semana, com acampamentos. Acuado, o governo financia a construção de 45 mil residências.
“Nessa briga com o poder, a gente precisava de um líder, e na classe política ninguém prestava. Foi assim que nasceu Superbarrio Gómez”, comenta com um sorriso nostálgico o seu criador.
O personagem aparece pela primeira vez no dia 7 de junho de 1987 durante uma mobilização em favor de uma indígena que estava sendo expulsa de casa. “De repente, uma luz vermelha e amarela cai sobre um camelô que não podia mais pagar seu aluguel, e o transforma em Superbarrio, o nosso herói de máscara”, relata.
Arquivo pessoal
Cidadão coletivo
A fantasia é uma herança da luta livre, um dos esportes mais populares no México. Os lutadores sobem ao ringue ao som ensurdecedor de músicas compostas exclusivamente para eles. A batalha inclui saltos acrobáticos, socos e mergulhos que levam a plateia ao delírio. O candidato ao título deve sempre, entre uma pirueta e outra, proteger a máscara, já que ser desmascarado pelo rival é visto como um insulto. “Superbarrio era também um enigma. Como não tinha rosto, era todos nós. Simbolicamente, era o cidadão coletivo”, afirma Marco Rascón.
No começo, o personagem teve um acolhimento frio, como se fosse uma piada de mau gosto. Mas como irritava a elite, que encomendava artigos contra ele, virou popular e ganhou credibilidade. Sua aparição usava três elementos centrais da cultura mexicana, explica Edwin Corbin, pesquisador da Northwestern University, no estado do Illinois, num ensaio sobre a política nos bairros.
“Primeiro, o símbolo da luta livre o apresentava como o bem contra o mal, que ia ganhando terreno moral. Segundo, seu surgimento milagroso lembrava à população as aparições de santos. Terceiro, o fato de ser um super-herói sugeria que possuía poderes especiais, nesse caso específico para resolver os conflitos”, analisa Corbin.
A luta, feita com diversão e humor, muda profundamente o campo da esquerda. “Já não éramos os guerrilheiros derrotados, arrancávamos o riso até dos policiais, o que enfraquecia a repressão”, conta Marco.
Um dos primeiros atos, em 14 de julho 1987, foi a organização de um combate de luta livre de Superbarrio contra Catalino Crill, que era inspirado em um personagem de telenovela, um vilão, rico, representante de donos de casas que alugavam residências em condições vergonhosas. Os militantes começaram a montar o ringue na Praça do Zocalo, no coração de México.
“Chegou a polícia e levou o ringue. Divulgamos a informação de que aquele era o primeiro ringue preso político. Uma novidade na história do país: levavam pessoas, urnas eleitorais, orçamentos municipais, mas nunca um ringue. Foi um fato tão ridículo que eles tiveram que nos devolver o ringue”, conta com uma gargalhada.
Assista ao relato de Marco Rascón sobre a atuação como Superbarrio.
Leia a segunda parte:
Esquerda perdeu a chance de enterrar o PRI, diz Rascón
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