No dia em que o Muro de Berlim foi derrubado, centenas de milhares de habitantes da República Democrática da Alemanha (RDA, a Alemanha Oriental) ficaram eufóricos: os marcos orientais valiam o mesmo que os ocidentais, as pessoas podiam assistir à televisão do Ocidente e ter acesso a todos os bens de consumo do mundo capitalista. Mais que isso: podiam viajar para qualquer parte do mundo.
Mas a realidade não demorou a chegar. O fechamento de centenas de empresas da Alemanha Oriental deixou um saldo de milhões de desempregados. O dinheiro do novo mundo voltou ao valor real e tornou-se indispensável possuir o suficiente para pagar o aluguel, as contas de gás, luz e água, manter um emprego estável – em poucas palavras, ter de se virar sozinho.
“Depois da reunificação, os alemães orientais perceberam que a realidade do ocidente era totalmente diferente do que eles imaginavam”, explica Jochen Staadt, pesquisador sobre a Alemanha Oriental na Universidade Livre de Berlim. “Viver na Alemanha Ocidental não era tão simples quanto passar de um lado para o outro e simplesmente começar a viver. A nova situação exigia uma espécie de treinamento social: ali, ninguém diria a eles o que e como teriam de fazer. Tudo precisava ser organizado por eles mesmos. E isso representou um problema social grave, porque depois de alguns meses começaram a sentir-se mal, a sentir falta não do sistema político da antiga RDA, mas sim de seu modo de vida”.
Esta é a Ostalgie, um neologismo que mistura Ost (leste) com Nostalgie (nostalgia) cunhado pelos próprios alemães para se referir à saudade do passado, quando a solidariedade e a coletividade eram características da sociedade alemã oriental.
“Agora, tudo se perdeu. Os valores que antes compartilhávamos dentro da família não são mais conhecidos pelos jovens de hoje”, diz o empresário berlinense Daniel Helbig. “Antes, as pessoas se ajudavam, havia muita solidariedade, não era preciso trabalhar para ganhar dinheiro, pois não havia problemas de emprego nem existia o medo de perdê-lo. Tínhamos sistemas de saúde e educação eficientes, um programa de assistência social amplo e muita igualdade para as mulheres”.
Isto não significa que o sistema político anterior fosse melhor. “O fato é que as pessoas se esquecem do ruim e só se lembram do bom. Mas nesta sociedade atual, tudo é dinheiro. Antes, havia pessoas idealistas que lutavam. Hoje, o mundo é horrível, corrupto e dominado pelo dinheiro”, acredita o empresário de 37 anos.
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Segunda parte: Reunificação alemã gerou choque de visões na imprensa
Quarta parte: Partido herdeiro dos comunistas cresce como alternativa da esquerda alemã
Ostalgie como negócio
A Ostalgie dos anos seguintes à reunificação da Alemanha fez com que muitos produtos do leste retirados do mercado voltassem a ser comercializados. Os pepinos em conserva Spreewald Gurken, famosos graças ao filme “Adeus, Lênin!”, e o refrigerante Vita Cola foram os primeiros a retornar ao mercado. Mas não foram os únicos. Hoje nas lojas do leste é fácil encontrar, além dos picles e da bebida, o vinho espumante Rotkäppchen (popular inclusive na parte ocidental do país); as barras de chocolate Haloren Kugeln e Zetti Knusperflocken; os biscoitos Russisch Brot; e o creme cosmético Florena.
Um caso à parte é o Ampelmännchen, ou “homenzinho do semáforo”. Talvez seja o único símbolo da antiga RDA adotado pelo lado ocidental da Alemanha. Trata-se de um boneco com chapéu típico que simula o caminhar dentro da luz verde dos semáforos para pedestres. Dentro da luz vermelha aparece o mesmo boneco com os braços estendidos em cruz, para orientar que se pare. O Ampelmännchen (abaixo) é considerado por muitos um símbolo de identidade e, depois da reunificação, algumas cidades da República Federal, incluindo Berlim, começaram a adaptar seus semáforos para usar a figura.
Hoje, o nome Ampelmann é marca registrada e o homenzinho pode ser encontrado em toalhas, mochilas, colares, joias, relógios, canetas, chaveiros, marcadores de livros, sandálias, bolas de futebol, bolsas, xícaras, copos, abridores de garrafa, doces e até massas, por preços que vão de 2,50 a 79 euros.
Mas o Ampelmännchen não é o único símbolo da Ostalgie que se transformou em negócio. Bares – os mais emblemáticos são o Zur Firma e o Ost Zone – e restaurantes, como o Mauerblümchen, decoram seus espaços com todo tipo de parafernália do antigo leste. E, em lojas como Ostkost e Mondos Art, é possível encontrar de filmes a roupas e alimentos da ex-Alemanha Oriental. Todos estes locais ficam em Berlim.
Outro local a evocar o passado socialista será o novo restaurante do hotel Ostel, que deve ser inaugurado nesta segunda-feira (9), no 20º aniversário da queda do Muro de Berlim.
O conceito é curioso: um local que concentrará os traços mais típicos dos restaurantes da RDA, como serviço ruim, pouca delicadeza dos garçons e mesas vazias com um cartão de “reservado” (imagem característica da época). Os clientes terão de esperar até que o garçom decida que uma das mesas “reservadas” está pronta para recebê-los.
O Ostel é um dos hotéis mais visitados de Berlim pelo preço baixo, pela localização no lado leste da cidade e pela aparência: parece um bloco residencial típico do Leste Europeu. Até o interior de cada um dos mais de 30 quartos é decorado com objetos originais da época.
“Achamos que seria uma boa ideia conservar tudo o que estava prestes a desaparecer e que, finalmente, é parte de nossa história. Depois da reunificação, muita gente se desfez dos móveis e de todos os objetos que lembrassem os tempos do comunismo. Nós nos encarregamos de recuperar cada um deles em lixeiras, brechós e mercados de pulgas. Foi assim que decoramos o hotel”, explica Helbig (abaixo), dono do estabelecimento.
Ele e o sócio, Guido Sand, dois berlinenses do leste, criaram o que no futuro poderá se transformar em uma importante rede hoteleira.
Como um paradoxo, os símbolos do cotidiano do comunismo acabaram como um negócio capitalista. “Sim, todo dia nós rimos disso”, conta Helbig, plenamente transformado em empresário.
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