A região leste da Líbia foi o coração das forças rebeldes de oposição que ruíram o regime de 42 anos do coronel Muamar Kadafi. Foi em Benghazi, segunda maior cidade do país, localizada na Cirenaica, onde os protestos se iniciaram em fevereiro deste ano e por onde a oposição passou a se organizar até chegar com o levante às ruas de Trípoli.
Para os EUA, que estiveram ao lado das forças de oposição desde o início, a porção oriental do país sempre foi vista como uma alternativa considerável para um eventual levante contra as forças do governo. Ao mesmo tempo, uma série de fatores dificultava essa possibilidade. Essas análises foram encontradas em um telegrama de 2 junho de 2008, de autoria de John Stevens, funcionário chefe da missão diplomática norte-americana em Trípoli. O documento foi vazado pelo Wikileaks.
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Ao contrário de Benghazi, Stevens focava no telegrama suas esperanças de levante na cidade de Derna, no litoral leste do país. “Com seus conjuntos habitacionais em estilo soviético com acabamento de concreto e ruínas greco-romanas, ela faz lembrar Tiro e Sidon, no sul do Líbano”, diz. De acordo com o diplomata, ela sempre foi vista como símbolo da resistência a Kadafi e, em anos anteriores, muitos de seus jovens foram lutar no Iraque contra as tropas ocidentais.
Os EUA esperavam que a região oriental da Líbia apresentasse mais condições para desafiar o regime. Pelas impressões de Stevens, havia condições para isso: a população local estava impaciente e um crescente conservadorismo religioso aliado ao altíssimo desemprego fomentavam uma oposição violenta. O leste do país foi a região de origem do Gial (Grupo Islâmico Armado Líbio), principal movimento de oposição a Kadafi nos anos 1990.
O diplomata ressaltava porém, que havia descrença na população dessa região em relação a uma possível intervenção dos EUA. Pelo contrário. As decisões de Kadafi de se engajar no combate ao terrorismo e desistir da ideia de desenvolver armas de destruição em massa favoreciam as relações entre eles. Na visão da população, os norte-americanos não permitiriam a deposição de Kadafi por conta de interesses no petróleo e no gás líbio.
Proselitismo
Segundo a avaliação no despacho de Stevens, a região do leste líbio estava dividida entre religiosos conservadores e seculares. Muitos seculares não concordavam com a aproximação de religiosos com líbios treinados “ideologicamente” no Afeganistão, Líbano e na Cisjordânia nos anos 1970 e 1980.
Um comerciante local, contato da embaixada dos EUA na região, acreditava que o retorno dessas pessoas à Líbia deveria preparar o terreno para um golpe do Gial. De acordo com essa fonte, o objetivo desses líbios que voltaram ao país era “marcar ideologicamente” algumas áreas do leste, com tradição de serem menos controladas pelo governo central desde os tempos do Império Otomano. Esses ideólogos treinados no exterior deveriam guiar a população local para um caminho mais conservador, recriminando aspectos cotidianos tidos como “não-islâmicos”, como fumar cigarros, por exemplo. Era comum nos mercados de Derna serem vendidos DVDs e fitas-cassetes com sermões.
De fato, com o objetivo de monopolizar a vida social, esses conservadores foram fechando cinemas, clubes esportivos e outros centros de atividade fora do controle das mesquitas nos anos 1980 e 1990. Derna gradativamente ganhava uma imagem de “cidade de resistência” a Kadafi. No passado, ela já havia resistido a ataques de otomanos, norte-americanos, italianos e do próprio Kadafi. A oposição aos italianos levou à glorificação de Omar al Mukhtar, nascido na região.
Isolamento
A principal razão para o êxodo de jovens em Derna era a falta de perspectiva causada pela pobreza em Derna. Para piorar, o fechamento de uma base do Exército líbio na cidade levou embora centenas de empregos indiretos. A taxa de desemprego de homens adultos chegava a 70%. Muitos desses jovens não conseguem se casar – um marco importante em uma sociedade tradicional. Antes os homens casavam por volta de 30 anos e hoje, muitos se casam só depois dos 40,o que gerava um quadro de insatisfação social.
Em oposição, muitas outras cidades do leste, na visão de Stevens, se beneficiavam da exploração dos recursos naturais e com algumas reformas liberais do regime de Kadafi na economia. Na opinião dessa fonte da embaixada, o governo deliberadamente deixou que Derna afundasse na pobreza. A ideia era manter a região pobre o suficiente para não permitir o surgimento de uma oposição forte.
Kadafi costuma justificar essa atitude citando um provérbio líbio: “se você os trata como cachorros, eles irão te seguir e agir como cachorros”. Os líderes religiosos locais, contrários ao que consideravam uma aliança “Kadafi-EUA”, souberam explorar essa insatisfação, pedindo doações e conclamando a população a lutar na “jihad” contra os EUA, conforme um segundo telegrama enviado pela embaixada norte-americana em Tripoli em 15 de fevereiro de 2008.
Nesse documento, também assinado por John Stevens, já havia relatos de confrontos entre oposicionistas e o governo em Derna desde 2007. Muitos desses opositores diziam “não ter nada a perder e estavam dispostos a morrer por algo maior”. As famílias desses mártires receberiam de 150 a 200 dinares líbios por mês como “pensão” – um salário de funcionários do governo varia de 250 a 330 dinares líbios.
Nem sempre os norte-americanos foram detestados na região. A fonte que forneceu as dados desse segundo boletim para a embaixada tinha dupla cidadania. Ela afirmou ter se sentido desconfortável durante o jantar familiar no qual obteve essas informações. Muito desse sentimento renasceu com a invasão dos EUA ao Iraque em 2003.
Referências à jihad são menos comuns em Trípoli e em outras regiões do país, mas são abundantes no leste da Líbia. A região é cheia de pequenas mesquitas, muitas delas na zona rural, dificultando o patrulhamento ideológico pelo governo central. Stevens encerra o telegrama com a avaliação de que, “apesar dos investimentos do governo na região (que não icluíam Derna), o orgulho do passado de resistência local aliado ao crescente conservadorismo religioso mostram que o leste da Líbia é menos controlado do que o governo central afirma”.
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