* Atualizado em 19 de julho de 2013, para inclusão do restante da reportagem
Após a renúncia de Bento XVI, o conclave terminou com a escolha do argentino Jorge Mário Bergoglio, de 76 anos, como o novo papa; no país do sumo-pontífice, outros cardeais da Igreja Católica já tiveram relações com a ditadura
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Transferência era uma palavra temida, que todos queriam expulsar de seus pensamentos.
Faltavam três semanas para que o inverno acabasse. As noites, porém, eram frias, mas nas horas de sol pressentia-se tempo morno iminente, como um bom presságio depois de tantos meses difíceis. Havia sido dito que a ausência duraria até o final do mês. Alguns tinham avisado a seus familiares que por várias semanas eles não poderiam telefonar-lhes nem visitá-los. Nunca tinham saído em grupo anteriormente e a novidade era inquietante, ainda que não o dissessem. No porão e no sótão do refeitório dos militares que deixavam para trás, tinham tido tempo para estreitar amizades. O vínculo era recente, porém intenso, cimentado pela experiência limite que haviam compartilhado, cuja conclusão era incerta.
Dessa vez não houve chamadas individuais para selecionar quem partiria nem os puseram na fila do corredor de azulejos brancos que levava à enfermaria onde se aplicavam as vacinas. Quando o último deles embarcasse no ônibus, o refeitório dos militares ficaria vazio, para que pudessem terminar as refeições e confundir os membros da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que chegariam com planos precários, porém precisos.
O banheiro seria completamente reformado e trocariam a pia na qual se lavavam os pratos. Uma bancada de mármore seria colocada, com placas de aço inoxidável, e um espelho de ponta a ponta, que daria ao lugar um aspecto menos lúgubre. Os quartos deveriam ter aspecto de escritórios. As paredes divisórias com argolas embutidas no chão seriam retiradas. A escada que ligava o porão ao sótão seria fechada.
O veículo pegou a avenida paralela ao rio e rumou em direção ao norte. Com suas roupas informais e suas bolsas esportivas, podiam parecer despreocupados, como tantos grupos de homens e mulheres jovens em uma saída de excursão. A prática de fraude e mascaramento não lhes era desconhecida. Um dos poucos que tinha mais de quarenta anos era alto, magro e encurvado como um cão galgo e usava óculos com lentes grossas. Os demais davam a impressão de pertencer a um grupo de estudantes universitários tocando seus instrumentos e cantando pelas ruas durante a primavera.
Não devem ter levado mais de meia hora para chegar até a sentinela da estação naval. Os guardas já terão identificado o veículo antes de autorizar a passagem. Outros chegaram ao mesmo lugar em vários carros, com vendas nos olhos.
A balsa da Prefeitura na qual subiram era de madeira, como as embarcações que transportam passageiros entre as ilhas, mas os assentos tinham sido removidos. Viajavam jogados no chão, entre bolsas, caixas com mercadorias, rádios e armas. A barca rumou pelo rio Tuyú-Paré em direção a Chañá-Miní. Esses nomes, que conheceriam mais adiante, não lhes significavam grande coisa. Alguns acreditam que a viagem durou mais de meia hora; os mais precisos lembram-se de uma hora e meia. A monotonia da água densa e marrom era atenuada ao longo do trajeto por casas com nomes inesperados, que a velocidade lenta permitia decifrar, apesar do estado em ruínas das placas, com a tinta carcomida pela umidade e pelo tempo. A burguesia liberal do século 19 batizou de Tigre essas paragens, um tributo ao Tigris mesopotâmico. Somente os habitantes dessas ilhas podem diferenciar cada um dos 350 rios, córregos e canais em que se ramificam. Um século e meio atrás, Domingo Faustino Sarmiento descreveu a forma das ilhas como “a mais detalhada e indescritível”, na qual “a superfície é uma ilusão, não é terra tudo o que parece nem pode se saber de antemão se o que existe é fértil”.
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O cais de madeira onde atracaram não tinha nada de especial. Tampouco a casa, para onde caminharam alguns metros pelo chão de madeira de tábuas desgastadas e pelo caminho que adentrava na terra úmida entre a vegetação que verdejava.
A construção tinha uns oitenta anos. Nada a diferenciava das casas típicas do delta do Paraná, com telhas de zinco para escoar as frequentes chuvas, pisos, paredes e divisórias de madeira, tudo assentado sobre palafitas que elevam as moradias para protegê-las das inexoráveis enchentes. Os oito ambientes eram amplos e deveriam ter no mínimo uns duzentos metros quadrados. Em um dos quartos foi instalado um rádio. Havia gerador elétrico e ferramentas suficientes. Um aquecedor de água a gás abastecia os banheiros e cozinha, e quatro caixas d’água forneciam água potável.
Uma plantação de álamos, outra de salgueiros e um arbusto ocupavam a reduzida porção de terra cultivada. Era preciso limpar o restante. Os arbustos com espinhos cresciam à vontade e impediam adentrar a mais de quinhentos metros do rio.
Outro grupo, menos numeroso, percorreu o mesmo itinerário no frio da madrugada. Tinham medo em vez de estar ansiosos. Alguns foram levados, algemados e com os rostos cobertos, em uma caminhonete, com vários beliches, cujo interior não era visível pelo lado de fora. Outros, em um caminhão coberto com uma lona grossa verde. Quando chegaram a uma área descampada junto ao rio, dava para ouvir latidos de cães e barulho de armas. Mandaram que subissem em uma embarcação descoberta e os esconderam com uma lona. Diante de qualquer movimento, chovia paus em suas cabeças.
Foram trancados na segunda construção, menor e mais rústica do que a anterior. Suas paredes externas eram de zinco e a parte de baixo, delimitada pelas palafitas, tinha sido fechada com alvenaria para hospedá-los. Todas as noites eram levados um a um, por caminhos escuros de terra iluminados por lanternas, para tomar banho na casa maior. Apesar das difíceis condições, celebraram quando os deixaram a sós naquele recinto insalubre, no qual os guardas não queriam permanecer. Pela primeira vez, puderam falar sem restrições. Dessa forma, deram pela falta de um deles. Chamavam-no de El Topo, mas ninguém sabia seu nome.
A última a chegar foi La Vieja. Era chamada assim porque tinha cinquenta e dois anos. Diferentemente dos outros, ela fora trazida sozinha. Ao chegar à ilha, pôde ver a placa de madeira onde se lia “O silêncio”. Ali passaram um mês os últimos reféns sequestrados que restavam, em setembro de 1979, do grupo de trabalho da Escola de Mecânica da Marinha.
[…]
As proclamações
Em 1975, durante o atormentado governo de Isabel Martínez de Perón, o cardeal Antonio Caggiano abriu mão das suas duas últimas nomeações, como arcebispo de Buenos Aires e capelão-geral das Forças Armadas, para se encarregar da evangelização das Forças Armadas. Seus paroquianos se preparavam para o regime militar na Argentina, a ferro e fogo, com o carinhoso apoio da Igreja, a cruz com a espada no conluio celestial. Monsenhor Emilio Grasselli passaria a entender, a partir daquela data, a conveniência da nomeação formal que Caggiano ofereceu-lhe em 1975, como secretário da capelania.
O bispo do Paraná, Adolfo Servando Tortolo, assumiu o cargo da capelania geral, e Grasselli permaneceu como seu secretário. Presidente da Conferência Episcopal havia cinco anos, Tortolo tinha se identificado com os mesmos princípios fundamentalistas que caracterizaram o trabalho de Caggiano. Além de Grasselli, Tortolo também herdou o pró-vigário Victorio Bonamín, que havia tido duros confrontos com os bispos mais propensos ao levante organizado pelo Concílio do Vaticano II, e os dois documentos do Celam (Conselho Episcopal Latino-Americano) de Medellín. Quando os bispos Jaime de Nevares e Alberto Devoto proibiram que os sacerdotes de Neuquén e Goya rezassem missas em cerimônias militares, Bonamín enviou capelães de outros lugares do país para comprazer-se com a ditadura dos generais Juan Carlos Onganía e Alejandro Lanusse.
A um mês da celebração de Tortolo como sucessor de Caggiano na capelania militar, Bonamín pronunciou uma homilia diante de uma formação militar que soou como um proclama golpista:
“Quando há derramamento de sangue, há redenção, Deus está redimindo, mediante o Exército Argentino, a Nação Argentina.” Indagou-se se “Deus não quererá algo mais das Forças Armadas, que esteja além de seu papel cotidiano de servir como exemplo para a nação inteira?” e disse que formavam “uma falange de gente honesta, pura [que] até chegou a se purificar na Jordânia do sangue para poder colocar-se à frente de todo o país para grandes destinos futuros. É preciso sofrer para que os outros possam desfrutar. Cabe velar com as armas em mãos os festins dos corruptos”.
Convocado pelo governo, o núncio Pio Laghi anunciou que Bonamín não expressava a opinião da Igreja. Porém, mais além dessa fórmula rotineira em uma conversa privada, não houve nem pronunciamentos públicos nem sanções contra a segunda hierarquia de um bispado que estava hierarquicamente ligado ao Papa e cujo titular presidia a Conferência Episcopal. A perspectiva do golpe de Estado se naturalizava e sobrenaturalizava.
O próprio Tortolo anunciou sua preparação para uma plateia de empresários reunidos em um hotel cinco estrelas. Citou o poeta franquista José María Pemán e comparou a crise argentina com a que imperava na Espanha nas vésperas da Guerra Civil. Argumentou que Deus permite o mal, tendo em conta os bens que produz, e exaltou as forças latentes e as reservas profundas que surgem na adversidade para fazer sentir seu oculto e misterioso poder. Com as palavras de Pio XI, descreveu um grandioso duelo entre o bem e o mal, que exigia dos homens decisão, coragem, gênio e santidade e anunciou que se aproximava um processo de purificação. “As grandes crises devem produzir grandes homens”, proclamou. Segundo Tortolo, aproximavam-se tempos de luta, escuridão e dor. Serviu-se de uma metáfora: “É uma dor que parte do mais profundo do ser humano, queima-o por dentro, espreme-o e o aperta por fora”. Parece a antecipação do método que logo se generalizaria no país.
Em 18 de dezembro de 1975, um grupo de militares da Força Aérea, na organização Falange da Fé, prendeu seu comandante-geral, revoltou-se na base de Morón contra sua denominada Força Aérea em Operações e durante os quatro dias de duração do episódio emitiu uma proclamação e várias declarações no município de Alcazar. Usaram a mesma frase do pró-vigário militar Bonamín sobre a humilhação e vergonha de “velar as armas para o festim de corruptos”, assinaram seu primeiro documento “no mês da Imaculada Conceição” e disseram “com o Apóstolo: combati o bom combate, concluí minha carreira, conservei a fé”. Retórica pura: depois do evento, nem sequer foram separados nas filas.
Os rebeldes queriam que o comandante-chefe do Exército assumisse o governo em nome das Forças Armadas. A decisão estava tomada, mas exigia alguma coisa mais de planejamento e controle. O intermediário que os persuadiu para que aguardassem sem tanta impaciência foi o padre Tortolo, que os visitou acompanhado de Grasselli. O acordo consistiu em que quem assumiria o comando da Aeronáutica seria o brigadeiro-general Ramón Agosti que, juntamente com os chefes do Exército e da Marinha, deporiam a presidenta quando tudo estivesse preparado. Os revoltosos depuseram as armas e não receberam nenhuma punição. Tortolo santificou a rebelião ao qualificar seus protagonistas como “admirável juventude, de alta moral e de uma coerência intransigente nos princípios e na fé.” Era apenas uma questão de oportunidade.
Na noite de 23 de março de 1976, um sobrinho de Bonamín o procurou nos escritórios da capelania em Buenos Aires. Luis Bonamín, de vinte e um anos, filho desse homem e sobrinho-neto do vigário, havia sido sequestrado e crivado de balas pela polícia de Rosario. A mulher e companheira de militância de Luis na Juventude Universitária Peronista, María Teresa Butticé de Bonamín, tinha de sair do país, e seu parente podia apressar as tramitações do passaporte. Chegaram à capelania no horário combinado, mas tiveram de esperar em um corredor, porque Victorio tinha uma reunião fora da agenda.
Quando pediram que entrassem, encontraram-se com chefes militares de alto escalão, de quem o sacerdote se despediu. Bonamín recebeu seu sobrinho e a moça e lhes perguntou o que havia acontecido. O aflito pai contou a seu tio o que sabia. Depois de escutar o relato, o padre apenas disse: “Ele procurou por isso”.
No dia seguinte, María Teresa reconheceu na sua televisão os homens que tinha visto sair da capelania. Eram os chefes do Exército e da Força Aérea, Jorge Videla e Ramón Agosti, membros da Junta Militar que tinha tomado o poder. Ambos tinham nascido em Mercedes, onde frequentaram o bispo Tortolo antes que ele fosse nomeado Vigário Geral. Desde então, mantiveram uma relação afetuosa. “Nos conhecemos há trinta anos”, explicou Tortolo.
Começava a ditadura militar mais prolongada do século 20 argentino.
[…]
Uma vez que Tortolo também era arcebispo de Paraná, Bonamín e Grasselli faziam a divisão dos assuntos cotidianos na capelania. Enquanto Bonamín percorria as unidades, Grasselli se encarregava de dar assistência aos familiares das vítimas que chegavam em busca de notícias. Grasselli atendia diariamente na paróquia Stella Maris, que funcionava com os procedimentos de uma unidade naval junto ao comandante-chefe da Marinha. Os familiares tinham de passar para uma sala ampla na qual os funcionários uniformizados recebiam seus documentos e lhes entregavam uma senha para chegar até Grasselli. Junto às longas filas de almas sofredoras, que aguardavam horas a fio, todo dia passava o almirante Emilio Eduardo Massera, que chegava em um Ford Fairlaine, ladeado por quatro Chevys. Para entrar em seu escritório, ele e os oficiais do comandante-chefe da Marinha usavam o acesso da capelania militar.
Quando Caggiano não tomava conta, nem cumpria suas funções na capelania, Grasselli ficava na residência universitária San José, em Gorostiaga e Luiz M. Campos, a cargo dos beneditinos. Vivia jogando futebol com os pensionistas, prática igual a que o missionário Contradí tinha usado para atraí-lo em sua infância. Grasselli jogava com a camiseta do Rosario Central. Os garotos do interior que passavam a noite ali enquanto faziam seus estudos na capital sabiam que de um pequeno escritório no pensionato, com uma linha telefônica exclusiva para ele, geria o necessário para a saída do país de detidos-desaparecidos que estavam nas mãos da Marinha. Alguns chegaram a ver os bilhetes das passagens aéreas. Em vários casos, a recomendação de algum oficial da Marinha foi decisiva para conseguir um lugar nessa residência, onde sacerdotes e pensionistas participavam de palestras do almirante Isaac Rojas e de militantes da Opus Dei.
Em junho de 1976, Grasselli recebeu na capelania Angela Boitano. Dois dias depois do sequestro do seu filho Miguel Angel, pessoas armadas invadiram sua casa. Como não encontraram o que procuravam, levaram o único casal de jovens do edifício. No lugar em que os mantiveram presos vários dias estava Miguel Angel. Um primo de Lita Boitano, almirante da Marinha, sugeriu-lhe que procurasse Grasselli. Aconselhou-a que lhe dissesse que o garoto talvez tivesse sido levado pelos próprios companheiros. “Não senhora, foram os militares”, respondeu-lhe o sacerdote. Assim que soube disso, o primo almirante indignou-se: “Não sei quem é ele para dizer essas coisas”.
Dois meses depois, Grasselli fez uma ligação por telefone. “Em que livro estará seu filho, no dos vivos ou no dos mortos?”, indagou-lhe. “Eu tremia”, relembra Lita. Após essa sórdida introdução, Grasselli informou-lhe que Miguel Angel não estava em nenhum livro. “Olhe, senhora, se eu não pude averiguar nada, acredito que nunca se saberá nada sobre seu filho”.
Alguma coisa semelhante lhe disse Pio Laghi, em 1979, durante a conferência do Celam no México. Angela Boitano estava entre as cinco mães que conseguiram uma audiência com o núncio apostólico, que tinha acompanhado a delegação episcopal argentina à conferência. “Monsenhor, já faz três anos que não sabemos nada de nossos filhos”, lhe disseram. Laghi respondeu: “Três anos é muito tempo e, se foram muito torturados, os militares não os deixarão em liberdade.” Ao sair, Lita sentiu que iria morrer. “Não sei se um militar teria respondido assim.”
Grasselli tinha se mimetizado de tal forma com os integrantes dos grupos de tarefas que debaixo da batina levava uma arma. Nora Santoro sentiu o contato com a arma quando o sacerdote a abraçou. Ela era a namorada do cabo do regimento da cavalaria, José Aleksoski, desaparecido enquanto fazia o serviço militar obrigatório no regimento criado por San Martín. Zivana Aleksoski, irmã do soldado, viu a arma quando o padre ficou de pé e a batina se abriu. A Lázaro Aleksoski, lhe disse: “Você já me chateou. Eu sei onde está o teu irmão, mas não posso te contar porque em vez de um morto, vamos ter dois”. Segundo Grasselli, ele soube que Aleksoski estava no campo de detenção Arana e entrou em contato com Tortolo, que “fez um pedido especial” ao ministério do Interior para que lhe concedessem autorização para sair do país. Os Aleksoski eram uma família iugoslava católica que tinha chegado à Argentina fugindo do comunismo. Grasselli disse ter recebido poucos dias depois um telefonema anônimo: “José David Aleksoski foi para o céu”, teriam lhe dito. Curiosa metáfora, mais religiosa que militar.
Os arquivos da Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas e os diferentes processos judiciais realizados desde então descrevem com amplidão a função cúmplice de Grasselli. Em muitos casos, dava esperança aos familiares e os dissuadia de apresentar denúncias ou formular petições públicas.
— Fica calma, que a qualquer momento você o terá de volta em casa — disse a Angela Angelini, mulher de um operário da fábrica Rigoleau, que foi visto em um campo de concentração da província de Buenos Aires e que nunca reapareceu.
Em outros, predicava resignação e lhes sugeria que já não havia nada a fazer.
Rubén Abel Beratz foi sequestrado da casa que dividia com dois companheiros em La Plata e que, como de costume, foi roubada. Sua família nunca soube quem o levou, por que nem aonde. Grasselli escreveu uma carta ao irmão de Beratz. “Está morto, parem de procurá-lo”, dizia.
Mas também há centenas de depoimentos que não deixam dúvidas sobre o envolvimento direto de Grasselli com os grupos de tarefas e seu conhecimento pessoal e profundo sobre o que acontecia nos campos de concentração.
Aos familiares do adolescente Benedicto Victor Maisano, sequestrado quando era estudante do ensino médio, narrou o tratamento que recebiam os prisioneiros. “Isso me fez pensar que eu estava por dentro e me deixou muito desconsolado.”
Aos familiares de Alfredo Arturo Kölliker Frers, sequestrado quando tinha sessenta e seis anos, Grasselli contou que a informação que recebia era de um lugar das Forças Armadas, que não o tinha identificado. Faziam-no entrar em um recinto onde apenas via um militar a quem tinha de ficar de costas, disse. Grasselli lhe lia a lista que trazia, com os nomes das pessoas cujo desaparecimento era denunciado pelos familiares. A cada nome pronunciado, o militar lhe informava se estava vivo ou morto. Grasselli mostrou a lista e explicou:
— As pessoas marcadas com uma cruz devem ser consideradas mortas.
[…]
Entrada da ESMA, em Buenos Aires: local foi usado pelos militares como campo de concentração
A ilha
Quando o fotógrafo e laboratorista forçado da ESMA (Escola Superior de Mecânica da Armada) Marcelo Camilo Hernández pediu a renovação do passaporte à Polícia Federal, os oficiais da Marinha ficaram com o antigo documento. Com o mesmo número e todos os dados pessoais de Hernández, confeccionaram uma carteira de identidade. Hernández deixou o país em meados de janeiro de 1979. Duas semanas depois, com esse documento no nome de Hernández, o grupo de tarefas comprou a ilha El Silencio, a poucos metros da boca do Chaná Miní, onde há um enorme destacamento da Prefeitura. Não é preciso uma perícia de caligrafia para avisar que sua assinatura não coincide com a do formulário policial preenchido pelo verdadeiro Hernández. Nem sequer tenta ser semelhante. Dessa forma, conseguiram o lugar do qual precisavam para alojar os prisioneiros enquanto durasse a inspeção da CIDH.
Segundo a escritura, o vendedor de El Silencio foi Emilio Teodoro Grasselli, o secretário da capelania-geral militar que conhecia vários oficiais da Marinha do grupo de tarefas e sabia o que acontecia nos campos clandestinos de concentração da ditadura.
Grasselli a tinha comprado do administrador da Cúria de Buenos Aires. Antonio Arbelaiz começou a trabalhar lá durante o arcebispado do cardeal Santiago Copello e seu auxiliar, Juan Carlos Solari, e permaneceu na equipe de administração com os arcebispos Lafitte e Caggiano. Em junho de 1967, Juan Carlos Aramburu assumiu como adjunto responsável pelo governo do Arcebispado de Buenos Aires. Em outubro, nomeou o administrador diocesano Vasco, como os sacerdotes chamavam Arbelaiz. Diz um sacerdote que trabalhou então na arquidiocese: “O vigário-geral, que na época era um monsenhor chamado Nolasco, e o secretário-chanceler Arnaldo Canale, que depois foi bispo auxiliar e vigário-geral, devem tê-lo indicado, porque o conheciam desde sempre”. Sua permanência na Cúria foi tão prolongada que chegou a se formular uma frase, um arremedo de uma antiga publicidade: “Os bispos passam e Arbelaiz fica”.
Os sacerdotes e seminaristas da arquidiocese conheciam a ilha. Todos os anos, Arbelaiz os convidava para uma excursão de um dia. “Ele pagava tudo, incluindo o clássico churrasco”, relembra um sacerdote que esteve no local em 1960.
Pouco depois de assumir sua nova responsabilidade, Arbelaiz redigiu seu testamento, de próprio punho: “Instituo como único herdeiro (sic) de todos os meus bens o arcebispado da cidade de Buenos Aires”, diz. Nele se incluía o saldo do preço da venda da ilha, outras três propriedades em San Isidro, dois terrenos em Pergamino e joias de ouro que guardava em um cofre no banco.
[…]
Diante de novas perguntas, Grasselli acabou admitindo que Arbelaiz tinha vendido a ilha a “uns amigos meus”, construtores de balsas, que precisavam de um lugar para testá-las. Mas reduziu sua própria participação à de um mero gestor de bons ofícios. “Diziam que também era minha, mas não está certo”, disse, o que está desmentido pelas provas documentais sobre sua participação em uma sociedade para a aquisição.
Insiste que foi apenas intermediário “porque o administrador e eu trabalhávamos na Cúria”. Dessa forma soube que Arbelaiz queria vender a ilha e contou a seus amigos quanto ele pedia. “Não pode ser, é pouquíssimo”, lhe responderam. “Disse-lhes que não tirassem vantagem de um velho”, insiste Grasselli. Perguntou-lhe se não lhe parecia pouco, e Arbelaiz lhe respondeu: “Eu me conformo com isso”.
O trato foi fechado em 26 de setembro de 1975. A escritura 205 indica que Arbelaiz vendeu a ilha a Grasselli e seus sócios por um preço total equivalente a US$ 21.350,00. Pagaram a metade e como garantia do saldo devedor hipotecaram a ilha. Arbelaiz morreu poucos meses depois, em junho de 1976. O restante do preço acordado foi cobrado pela Cúria, como parte da sucessão. O advogado da Cúria, e não o comprador, pediu, em 28 de novembro de 1978, o cancelamento da hipoteca e o aviso de registro da propriedade do imóvel “por ter sido abonado o aporte da mesma em sua totalidade”. Já sabia da transação que teria lugar dois meses depois?
Jorge Alfredo Regenjo, um dos habitantes mais antigos da região, tinha sido sitiante em El Silencio. Acreditava que a ilha pertencia à Cúria de Buenos Aires e que Arbelaiz era encarregado do lugar. Relembrou que um dos compradores era um sacerdote. Disse que em 1979 a chácara passou a ser propriedade de um senhor Ríos. Então viu chegar barcas da Prefeitura com quarenta a cinquenta pessoas. Alguns vizinhos acreditavam que Ríos era coronel e trabalhava na Residência Presidencial. Não havia ilhéus que trabalhavam em El Silencio. Todos eram “gente de fora”.
[…]
Em 1980, o documento de Hernández voltou a ser usado, desta vez para vender a ilha a Mario Pablo Verone, sócio da empresa Lande S.A., de Importação e Exportação, proprietário até hoje. Pagou por ela 35.000 dólares. Curioso detalhe: não houve documento de compra e venda, e o vendedor declarou que tinha cobrado o preço antes da assinatura da escritura. O cotejo de caligrafia com uma procuração que Hernández deixou a seu pai antes de sair do país ratifica que sua assinatura foi falsificada.
A escritura testemunha que os vendedores e o comprador a assinaram na presença do escrivão Rubens N. Larumbe Sepic, em cujos escritórios foram realizadas as duas transferências, em 1979 e 1980. Porém o notário diz que não se lembra de nenhuma das pessoas que intervieram e em tudo se remete às constâncias dos instrumentos públicos que lavrou. Tanto Grasselli como seus sócios alegam que “um senhor Ríos”, em nome de Hernández, realizou a operação. Ou seja, Jorge Radice, o responsável pelos negócios imobiliários da ESMA.
[…]
Em frente a El Silencio morava um sargento da polícia buenairense. Para sua mulher chamavam a atenção os vultos de grandes dimensões que chegavam nas barcas da Prefeitura, o sobrevoo de helicópteros em baixa altitude, que nunca desciam, e os disparos de armas de fogo que com frequência eram ouvidos. O que mais a intrigava era a disparidade entre o número de pessoas que viu chegar e ir embora. Teria gostado de olhar mais, porém seu marido não lhe permitia, porque era muito ciumento. Mas quando foi citada por um juiz, negou ter visto vultos em movimento. Confirmou o sobrevoo do helicóptero e disse que uma barca da prefeitura trouxe meia centena de pessoas, entre elas mulheres. Alguns trabalhavam, outros tomavam sol. Os disparos eram para atirar no vazio. E nada lhe chamou a atenção.
Tradução por Mari-Jô Zilveti
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