Kim Jong-un — Portrait of a Rat (2011), óleo de Pete Krill, faz referência ao ditador da Coreia do Norte
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Enquanto o megahit sul-coreano “Gangnam Style” bombava, eu pensava na Coreia do Norte — oficialmente, RDPC (República Democrática Popular da Coreia). Observadores culturais já dissecaram o clipe da canção, esclarecendo que Gangnam é o bairro mais rico de Seul, um ícone da ascensão sul-coreana. Mas pouco foi dito sobre o sentido literal da palavra gangnam. O termo significa “ao sul do rio”, mais precisamente o rio Han, que, como um Sena mais feio e caudaloso, atravessa a capital da Coreia do Sul. Como o vídeo do rapper K-pop PSY sugere, o sul da capital é mais chique e mais cool do que o norte — um triste resumo, também, da situação da própria península coreana.
Um fato frequentemente ignorado é que a Coreia do Norte — essa terra inimiga assolada por ditadores e pela fome — está separada da Coreia do Sul por uma zona desmilitarizada, severamente militarizada. É uma separação historicamente recente, imposta pelas potências mundiais nos tempos da Guerra Fria. Até a trágica divisão, a Coreia era uma só, com uma tradição cultural e musical homogênea. Apesar de hoje sabermos bem mais sobre a troca de fogo entre os países do que sobre seu intercâmbio cultural, novelas e canções pop sul-coreanas têm atravessado a fronteira, e mesmo a Coreia do Norte conta com uma vasta indústria de cultura pop. O NK-pop [como é conhecido o pop norte-coreano] não tem nada de “Gangnam Style”, mas mesmo assim tem muito a dizer sobre um país que conhecemos tão pouco.
Alguns anos atrás, uma amiga me deu de presente o CD Radio Pyongyang, lançado pelo selo Sublime Frequencies. É um disco modesto — uma pequena coletânea com colagens de trechos de rádios da RDPC —, mas as canções pop carregadas de sintetizadores abriram um portal para um mundo fascinante, e eu comecei a escutar todo o pop norte-coreano que conseguia encontrar.
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Kitsch decadente
Sim, o NK-pop é uma criação do Estado e corresponde a certa visão política e estética. Mas a RDPC não está sozinha na produção industrial de cultura popular. As insossas atrações pop da Coreia do Sul são frequentemente concebidas e montadas por estúdios, e a criação de boy bands é comum no Ocidente. A peculiaridade do NK-pop é sua visão totalizadora e portadora de uma falsa perfeição. As faixas produzidas pelo governo figuram obrigatoriamente na programação da rádio e TV estatais da RDPC.
O NK-pop é um estudo sobre o kitsch decadente. As vozes são geralmente femininas — seus agudos seriam mais apropriados à transmissão da pureza infantil da “raça” norte-coreana. No estilo clássico do trot, acompanhadas por acordeão, guitarra, bateria e sons de laser, as cantoras vocalizam com vigor perturbador, sorrisos congelados, olhos doces e vibrato operístico. O estilo remete às tradições musicais dos povos nativos, mas a diferença é que essas canções românticas falam sobre o regime. “Onwards Toward the Final Victory”, uma música para o novo líder Kim Jong-Un, foi lançada poucos meses atrás.
No início de 2012, o NK-pop foi parar na seção de notícias internacionais (ou quase isso). O jovem presidente Kim Jong-Un foi visto em companhia de uma bela e misteriosa mulher. O rumor inicial era de que se tratasse de Hyon Song-wol, uma ex-integrante do Pochonbo. No fim, se tratava de outra pessoa, mas não seria uma grande surpresa se o líder norte-coreano saísse com uma estrela do pop.
Porta de entrada
O regime da RDPC estabelece que “as artes e a cultura devem apoiar vigorosamente o juche [autonomia] e incorporar resolutamente a ideologia do partido, o espírito dos trabalhadores e o humanismo”, mas desconfio que os norte-coreanos só queiram um pouco de entretenimento.
No livro Under the Loving Care of the Fatherly Leader, o jornalista Bradley K. Martin relembra sua visita a Pyongyang em 1989, quando o NK-pop com influências do rock ainda era uma novidade. Embora noraebang (karaokês) e discotecas fossem abundantes na área voltada para os visitantes estrangeiros, os simples habitantes da RDPC tinham acesso limitado à música vinda do exterior (portanto, nada de imitações de Celine Dion nos karaokês). Jovens norte-coreanos ansiavam por uma batida mais forte e, escreve Martin, buscavam o rock que os estrangeiros ouviam em seus alojamentos. Lendo essa passagem, me veio à mente a imagem de um grupo de estudantes uniformizados amontoados debaixo de uma janela, dançando ao som do rock’n’ roll trazido pelo vento. Afinal, música e dança — baladas românticas, trot e rock — são tão vitais na Coreia do Norte como em qualquer outro lugar do mundo.
O NK-pop não é uma criação puramente artística e não-mediada – mas o pop raramente o é. E para nós daqui de fora que espiamos a música norte-coreana, apesar de manufaturada e fora de moda, é uma boa lembrança da diversidade humana da RDPC. O NK-pop oferece uma porta de entrada, um ponto de conexão, e serve como um antídoto às simplificações do noticiário ocidental. Assim como o K-pop é bem mais do que “Gangnam Style”, há muito mais música a ser descoberta na escuridão de Pyongyang.
Tradução por Carolina de Assis
* Texto originalmente publicado no site norte-americano Salon
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