Ditadura em Imagem e Som é um livro fruto de pesquisas acadêmicas baseado em produções cinematográficas sobre a ditadura militar no Brasil, redigido pela socióloga Caroline Gomes Leme.
Publicada em 2013 pela Editora Unesp e premiada pela Associação Nacional de Pesquisa em Ciências Sociais, a obra realiza uma análise de como o cinema nacional, entre os anos 1979 a 2009, retrata um dos períodos mais obscuros da história brasileira.
Tortura, marco da Lei da Anistia, os papéis da direita e da esquerda armada no âmbito cinematográfico são alguns dos tópicos enfatizados na obra, que é traçada pela ideia de “não somente fazer uma análise do filme, mas pensar o cinema como intérprete do Brasil”, como explica a autora, em entrevista a Opera Mundi sobre as mudanças percebidas no cinema brasileiro durante as três décadas abordadas no estudo.
De acordo com a pesquisadora, foram mais de 70 filmes analisados para a obra. Entretanto, ao longo dos capítulos, os cinco longas aprofundados são: Ação entre amigos, de Beto Brant (1998); Corpo em delito, de Nuno César de Abreu (1990); Zuzu Angel, de Sérgio Rezende (2004); Nunca fomos tão felizes, de Murilo Salles (1983); e A terceira morte, de Joaquim Bolívar (1998).
Opera Mundi: o Ditadura em Imagem e Som traz uma interessante análise da visão cinematográfica em relação à ditadura militar no Brasil entre 1979 e 2009. Quais foram as maiores mudanças notadas nesses 30 anos?
Carolina Gomes Leme: nos filmes lançados de 1979 a 1989 era muito comum a presença de personagens de direita alinhados politicamente ao regime militar, mesmo que fossem filmes críticos ao período. Havia uma polarização muito presente na sociedade civil entre personagens que apoiavam e personagens que se opunham à ditadura.
Às vezes os filmes que não eram diretamente políticos mas que estavam ambientados na ditadura, como o caso do Banana Split ou do Bésame Mucho, sobre relacionamentos pessoais, trazendo personagens alinhados ideologicamente à direita.
E esses personagens de direita desaparecem do cinema dos anos 1990 e 2000.
Acho uma questão bem significativa que tem a ver com o que outros pesquisadores também falam: sobre a construção de uma memória conciliadora sobre o regime militar. Uma memória crítica ao regime militar, mas uma conciliação entre setores liberais e setores de esquerda. Então os setores liberais que tinham apoiado o golpe, como a imprensa, a igreja, o empresariado, etc, eles querem se dissociar do período militar no contexto da abertura e a esquerda também quer se dissociar do passado da luta armada e se alinhar à ideia da resistência democrática.
Essa memória conciliadora vai unir liberais e esquerda, principalmente setores da esquerda não armada, a essa ideia de resistência democrática: como se a sociedade civil como um todo se opusesse desde sempre ao regime militar.
Cria-se uma posição não mais entre direita e esquerda, mas entre autoritarismo e democracia. Então como se a sociedade civil fosse homogeneamente vitimada pelo golpe. Essa memória conciliadora como se a ditadura fosse exclusivamente dos militares autoritários e vilões e a sociedade civil como vítima.
Principalmente a partir de 2010, no contexto já de discussão da Comissão da Verdade, novas discussões sobre a memória da ditadura vão reavivando e quebrando essa memória conciliadora que foi construída ao longo dos anos 90.
De 2010 para cá, os personagens de direita voltam às telas de cinema. A grande novidade é que não só reaparecem esses personagens e filmes críticos ao regime militar, como também surgem obras alinhadas ao ideal de direita. É o caso do filme do Brasil Paralelo.
Como era o retrato da tortura nos filmes?
A questão da tortura é sempre retratada sem um debate mais aprofundado sobre os projetos sociais e políticos que estavam por trás da ditadura militar. Muitas vezes os filmes têm esse compromisso de demonstrar de uma maneira mais realista as atrocidades da tortura.
Mas a preocupação sobre demonstrar, por exemplo, por que se instaurou o golpe? São pouquíssimos filmes que tratam do contexto pré-1964 e do acontecimento imediato pós-1964, além dos projetos políticos que estavam em disputa naquele contexto.
É como se os filmes retratassem o debate de uma maneira focada no aspecto moral e muito menos nos debates políticos sobre as consequências também sociais e econômicas. A questão do aumento da desigualdade social e salarial, temas mais econômicos e sociais aparecem pouco até mesmo nos documentários. O debate fica muitas vezes raso, principalmente nos filmes dos anos 90 e 2000.
E a questão da censura?
Um filme feito ainda nos anos 70, mas que foi censurado e só recuperado nos anos 2000 é do Sérgio Muniz. Chama Você também pode dar um presunto legal. Ele não conseguiu ser distribuído na época por discos. Era no auge da repressão e um dos poucos filmes que tratavam das questões do projeto político da ditadura.
A maioria dos filmes eram produzidos pelo Estado, embora com muitas contradições. Um exemplo foi o Para frente Brasil, que depois foi censurado pelo próprio Estado. São várias as contradições já que eram filmes produzidos com recursos estatais. Ao longo dos anos 90 e 2000, no contexto das leis de incentivo fiscal, as obras também passam para o setor privado.
De 2010 para frente, com o reavivamento dos debates ideológicos na sociedade do presente, no contexto da eleição da Dilma, esses debates voltam à tona. A sociedade civil polarizada também aparece de uma maneira mais evidente nos filmes que vão ser lançados nesse período.
O Cidadão Boilesen, o Reis e ratos, o Cara ou Coroa, são alguns filmes mais recentes que aparecem personagens de direita que apoiavam o golpe, mesmo sendo críticos. E também começam a aparecer os revisionistas e as distorções históricas de filmes que apoiam o regime militar, como mencionei anteriormente, o caso do filme do Brasil Paralelo e também Reparação.
Alguma explicação para essa mudança de leitura? Houve alguma influência em relação ao espaço político das Forças Armadas no decorrer do tempo?
Nossa transição da ditadura para a democracia, ou para o regime liberal democrático, foi muito conciliada. Não houve punição aos torturadores com a Lei de Anistia. Então todo esse processo de debate sobre a memória ocorreu de maneira diferente do que na Argentina e no Chile, por exemplo.
Isso pode fazer com que o cinema tenha a dificuldade de ter abordagens mais aprofundadas, já que esse tema não é aprofundado pela sociedade. Mas isso começou a mudar com a Comissão da Verdade. Inclusive em relação à repressão a outros setores que não só os opositores diretos ao regime, como também aos setores camponeses, trabalhadores e indígenas. Isso começa a aparecer no cinema.
60 anos depois da instauração da ditadura militar no país, ainda podemos ver alguns resquícios dela. O livro continua sendo uma ferramenta essencial, não é mesmo?
É muito importante a gente debater essas conexões entre o passado e o presente. Isso também tem aparecido mais nos filmes recentes. Eu gostaria de citar os filmes Orestes, A memória que me contam, Corpo, todos lançados de 2009 para frente. São filmes que fazem pontes entre o passado e presente e mostram que a ditadura não é um período que ficou para trás, que é uma página virada da história como apareciam em vários dos anos 90.
Eu mencionei filmes que fazem pontes para perceber as questões não resolvidas tanto subjetivamente para as pessoas que têm traumas em relação àquele período, aos que perderam entes queridos, mas também para as pessoas que sofrem hoje violações dos direitos humanos como consequências dessa estrutura violenta de aparato repressor que a gente tem nos nossos setores, como por exemplo a Polícia Militar.