São históricos os conflitos entre Brasil e Argentina, herdados das
respectivas metrópoles coloniais. De disputas de fronteira, corrida
armamentista e desconfiança mútua, as relações passaram a ser mais
amenas e cooperativas a partir da década de 1980. Hoje em dia,
restringem-se a picuinhas comerciais, como a “guerra da geladeira”, em
2004. O recente episódio da retenção de 400 caminhões no porto seco
rodoviário de Uruguaiana, fronteira do Rio Grande do Sul com a
Argentina, é mais um exemplo.
Licenças não-automáticas de importação para farinha de trigo, vinho,
alho, azeite, azeitona, rações para animais e outros produtos
alimentícios foram impostas à Argentina pelo Brasil de forma semelhante
à qual o país vizinho vem praticando desde o ano passado. A
reciprocidade foi uma estratégia diplomática brasileira, não meramente
para retaliar ou diminuir o fluxo comercial com o segundo maior
parceiro do Brasil, mas para pressionar o governo argentino a rever sua
postura.
O resultado dessa estratégia sairá da reunião entre os presidentes
Cristina Kirchner e Luiz Inácio Lula da Silva, que ocorrerá em 18 de
novembro, em Brasília. No encontro, serão debatidas as reclamações do
governo argentino quanto às assimetrias comerciais entre os dois
países. Desde 2004, a Argentina apresenta déficits nas transações com o
Brasil.
Com o objetivo melhorar o desempenho da indústria nacional de lá, desde
2008, a Casa Rosada impôs licenças não-automáticas sobre mais de 100
produtos brasileiros, especialmente têxteis e confecções, calçados,
eletrodomésticos, móveis e autopeças. Em março deste ano, foram
adicionados 58 produtos à lista.
Ao adotar uma contramedida paralela, o governo brasileiro foi acusado
de agir com falta de transparência, retendo os caminhões sem aviso
prévio. De acordo com o ministro do Desenvolvimento, Indústria e
Comércio Exterior, Miguel Jorge, em pronunciamento no final do mês
passado, não se trata de retaliação, mas apenas de impor alguma demora
às importações de produtos argentinos, para uma avaliação do comércio
bilateral.
Regras da OMC
Esse tipo de restrição comercial está previsto no artigo 3º do Acordo
sobre Procedimentos para o Licenciamento de Importações da OMC
(Organização Mundial de Comércio), firmado pelos dois países em 1994.
Trata-se da exigência de um pedido ou de outra documentação – diferente
daquela normalmente necessária para fins aduaneiros – ao órgão
administrativo competente, como condição prévia para autorização de
importações.
A crítica feita pelos empresários brasileiros é que estaria ocorrendo
no país vizinho um desvio de comércio e os produtos que deixaram de ser
importados do Brasil passaram a ser comprados da China, que superou os
brasileiros como principal exportador para a Argentina em têxteis,
calçados e não está longe de ultrapassar em eletrodomésticos. Eles
também reclamam do fato de as autorizações demorarem cerca de 180 dias,
o triplo do permitido pela OMC.
Prejuízo
Além da crise econômica, a aplicação de licenciamento não-automático
tem prejudicado a corrente de comércio bilateral que se reduziu em
30,4%, passando de 26,7 bilhões de dólares (2008) para 18,6 bilhões de
dólares de janeiro a outubro deste ano.
De acordo com dados do Ministério do Desenvolvimento, as exportações
brasileiras para a Argentina caíram 37% e as importações provenientes
daquele país encolheram 19,5% no mesmo período.
Houve, no início do ano, tentativas brasileiras de suspender licenças
automáticas. O Ministério do Desenvolvimento chegou, inclusive, a
anunciar tais medidas. Entretanto, o governo Lula recuou após protestos
da presidente argentina. Não se desejava influenciar negativamente o
resultado das eleições parlamentares argentinas, em julho. Com o
resultado positivo para o casal Kirchner, o tema voltou à agenda em
Brasília.
Integração estratégica
O esforço empreendido pelos governos Lula e Kirchner para tornar o
Mercosul muito mais do que um acordo meramente comercial, como previsto
no Tratado de Assunção, não pode esbarrar em embates pontuais. O
governo Lula tem demonstrado que compreende a necessidade argentina de
desenvolver sua indústria, por isso mesmo não havia agido
anteriormente. As medidas argentinas de proteção, porém, não podem
chegar a um nível que prejudique e inviabilize o comércio entre os dois
países. Foi um aviso de que uma visão de curto prazo não pode
sobrepor-se ao projeto estratégico de integração entre os dois países.
*Cláudia Macedo, jornalista, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pós-graduada em História das Relações Internacionais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), escreveu este artigo para o Opera Mundi.
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