Ana Maria Passos/Opera Mundi
Guaguas de pão e colada morada são os alimentos mais oferecidos aos mortos no Equador
Os pães em forma de gente, ou guaguas de pão, e uma bebida cremosa chamada colada morada são os símbolos do dia dos mortos no Equador, uma das datas mais importantes na cultura do país.
Essas iguarias podem ser encontradas em padarias e cafés, mas também são feitas em casa, envolvendo toda a família, e levadas ao cemitério para compartilhar com os parentes mortos.
Na paróquia de Calderon, ao norte de Quito, dona Concepción Morales levou ao cemitério pão, colada e batata com carne para oferecer aos pais e ao filho que perdeu. “Eram comidas que eles apreciavam e nós viemos comer com eles.” Outros filhos, nora e netos acompanhavam a senhora de 82 anos.
As famílias se reúnem em volta da sepultura e depositam panelas, cestos e jarros com a bebida e a comida no chão. Josa Quilumba levou balas, banana e alguns grãos que só nascem na Cordilheira Andes para oferecer a seis parentes enterrados ali.
“Eu me levantei às cinco da manhã para preparar tudo”, contou. Estudantes da vizinhança chegaram com cadernos na mão pedindo que ela explicasse a tradição.
Os visitantes também levam flores e cartões para os mortos, com mensagens carinhosas do tipo “você é inesquecível”. Um deles dizia “meus sentidos pêsames, avozinha Mercedes”, assinado por Laura.
Essa forma de recordar e homenagear os mortos é resultado do sincretismo religioso e cultural que marca o continente americano. O que se vê hoje são costumes que resistiram ao encontro do catolicismo com as crenças indígenas.
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O dia para rezar pelas almas foi estipulado pela Igreja Católica há mais de mil anos. A primeira vez em que foram feitas homenagens aos mortos em 2 de novembro foi no sul da França, em 998. Quando os espanhóis chegaram à América e começaram a evangelizar os povos originários, estes também já tinham seus ritos para cultuar os parentes e amigos mortos.
O antropólogo Enrique Tasiguano, que pertence à nação indígena Quitu Cara, explica que tradicionalmente os povos originários seguiam o calendário agrícola. A partir da observação da natureza, entendiam que a vida e a morte eram parte de um mesmo ciclo. Para eles, quando alguém morria neste mundo, continuava vivo e com as mesmas necessidades em outro lugar.
De setembro a dezembro, tempo de chuva, de preparar a terra e semear, os pais passavam aos filhos os conhecimentos deixados pelos antepassados, conta Enrique.
“Recordavam os seres queridos que se foram por meio da preparação da farinha e a elaboração de pães com a aparência dos parentes mortos. Os adornos diferenciavam se era homem ou mulher, adulto ou criança. Também eram feitos cavalos, pombas e outros animais de pão.”
Ana Maria Passos/Opera Mundi
Alimentos oferecidos aos mortos podem ser comprados em padarias ou feitos em casa
A bebida oferecida aos mortos é a saborosa colada morada, feita com muitas frutas, ervas, rapadura e farinha de milho roxo. Tinha a função de revigorar o espírito e a memória dos antepassados.
Essas delícias eram preparadas na véspera do dia de finados, em família, continua Enrique. Quando estava pronto “eles distribuíam tudo na mesa para que os mortos pudessem desfrutar da comida durante a noite”.
No dia seguinte a avó fazia a leitura dos buracos que apareciam na massa e das bolhas na bebida. Se fosse grande, era o dedo do avô. Os pequenos, de alguma criança.
Ana Maria Passos/Opera Mundi
Antes de comer, familiares mais velhos interpretam as diferenças entre as formas das guaguas de pão
Depois de interpretar as pistas, a avó consagrava a comida aos mortos e distribuía o que estava na mesa. A família comia uma parte e levava a outra ao cemitério. Os amigos que chegavam para visitar a tumba tinham que provar da comida.
Neste dia, os padrinhos têm a obrigação de presentear os afilhados com guaguas de pão, não importa a idade que eles tenham. Os das mulheres têm formato de boneca e os dos homens, de cavalinho.
Esses costumes já estão se perdendo em muitas partes, lamenta Enrique, que também se preocupa com a comercialização dos produtos de finados e a perda do sentido, “que é a transposição do conhecimento, da sabedoria e da bondade dos ancestrais”.
Nos territórios indígenas a tradição segue. Na comunidade La Capilla, também ao norte de Quito, ainda estava escuro quando o xamã Jaime Pilatuña Licango acendeu o fogo para invocar o espírito do filho morto e iniciar o contato com ele até o fim do dia. Jatun tinha apenas 19 anos de idade quando perdeu a vida em um acidente.
Jaime conta que o filho gostava de ir ao cemitério neste dia para presentear os avós. Jaime faz plantão na sepultura do filho e, a cada visita, oferece colada, empanadas e chicha, outra bebida a base de milho. “Os amigos vêm, sentamos aqui e dividimos”.
As oferendas são alimentos para o espírito. Ele absorve, recebe esse carinho”. O xamã diz que, depois de perder o filho, há doze anos, entendeu de verdade o valor dos rituais feitos nesta data. “Isso me conforta, me preenche, me dá calor, me dá amor”, diz ele.
As homenagens aos mortos seguem até domingo no Equador, com feiras de comidas típicas de finados, exposições de lápides de mármore, concursos de guaguas de pão, visitas às criptas das igrejas coloniais e programação especial nos museus.