Steve Paine
Agora, uma máquina avisa a hora de comer e trocar a fralda
Em inglês, “gadget” quer dizer dispositivo, mas também quer dizer geringonça. Seja o “gadget” um dispositivo ou uma geringonça, tem a pretensa função de colocar a tecnologia a nosso serviço.
O sujeito que inventou o iPad certamente não pensou que um tablet também serviria pra entreter crianças que mal sabem segurar um chocalho. O pimpolho está enchendo a paciência? Basta colocá-lo em um cantinho, com um tablet projetando luzes e cores… Eu sei, não faltam alertas sobre os problemas desse tipo de coisa, mas o que eu posso fazer? A criatura não para de chorar! Estou sem tempo para tomar conta do meu filho, estou atrasada para o pet shop, meu cachorro tem hora marcada.
Em uma rápida busca na internet, a associação das palavras “gadget” e “bebê” dá uma ligeira ideia do que mamães e papais podem fazer pelos seus filhos, graças ao advento das ultraeficientes geringonças.
Contenha o riso, a coisa é séria.
“Gadget” de música para bebês que ainda não nasceram. Trata-se de uma espécie de cinto de segurança com alto falantes virados para a barriga. Quando sentir vontade de interagir com seu filho na barriga, ligue o “gadget” de música intrauterina.
“Gadget” que traduz choro de bebê. Não é brincadeira. Uma empresa criou um dispositivo que promete livrar você do tremendo aborrecimento de interpretar o choro do pequeno. Bebê irritado? Com sono? Com dor de ouvido? Com fome? Fique tranquila. Seus problemas acabaram. Só tome cuidado para não ficar sem pilhas em casa, afinal, uma mãe zelosa precisa saber o que seu bebê está sentindo. Deixe sempre um jogo de pilhas de reserva.
“Gadget” para monitorar o bebê quando você estiver em casa. Esqueça tudo o que você já ouviu falar sobre interação entre pais e filhos. Com câmera de 3 megapixels. Wi-Fi, bluetooth, segundo o vendedor, o “aparelho promete manter você em contato com seu bebê mesmo quando você estiver em casa”. Cristo Redentor! O aparelho promete manter você em contato com seu bebê!!!! Tem microfone! “Você vai poder conversar com seu bebê”, diz o anúncio. Agora entendi porque tem tanta gente esquisita no mundo. Nossas mães não tinham aparelhos para conversar conosco.
Temporizador para avisar a hora de trocar a fralda. Pare o mundo, eu quero desembarcar agora! A engenhoca também avisa a última vez que seu bebê comeu!!! Avisa quando foi que o seu bebê dormiu pela última vez!!! “É, sem dúvida o melhor invento para cuidar do seu bebê”, diz uma reportagem. Não tenho nenhuma dúvida disso.
FILIP PUT
Gadgets em famíla: não há limites para a tecnociência, não há limites para o mercado
Chega? Não, não chega.
As coisas não param por aí. O ex-padre Joseph Fletcher, que após virar ateu tornou-se um dos maiores especialistas mundiais em bioética, foi curto e grosso em um de seus comentários, transcritos por André Gorz (O Imaterial, editora Annablume, 2005): “Nos demos conta de que o útero é um lugar obscuro e perigoso (“a dark and dangerous place”), um meio repleto de riscos. A abolição da maternidade será completada quando a clonagem dos seres humanos tornar-se plenamente realizável, e a exogênese substituir com vantagem o estágio da fecundação artificial assistida.
Exogênese. Vida produzida e gestada fora do corpo humano. O que se discute hoje, entre embriologistas de ponta, é não “se faremos isso”, mas “quando faremos isso com humanos”.
Quando finalmente iremos abolir a gravidez e a maternidade, de modo a gestar crianças em úteros artificiais. “Transparentes, mais seguros, sob a supervisão médica”, segundo Fletcher. Ovelhas já são gestadas dessa forma em diversos laboratórios pelo mundo.
Não há limites para a tecnociência. Não há limites para o mercado. Não há limites. Nem que para isso, em nome dos negócios, tenhamos que abolir a natureza. Nem que para isso tenhamos que abolir nossa própria humanidade.
Tranqueiras eletrônicas para saber se o bebê fez cocô é brincadeira de criança. No futuro, precisaremos de um dispositivo para nos avisar se o bebê que temos no berço é, de fato, um ser humano. Ou um “gadget”. Ou uma geringonça.
Sempre achei que a expressão “mercantilização da vida” tivesse mais a ver com o campo dos signos, da interpretação filosófica do mundo. Doce ilusão. O ser humano se tornará uma coisa também do ponto de vista biológico.
Que saudades da ovelha Dolly. Como éramos ingênuos.
* Texto publicado originalmente no blog do jornalista Marques Casara, Viagem na irrealidade cotidiana
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