Uma questão divide o mundo: a Palestina. Um dos últimos projetos coloniais europeus em curso, a tomada do território palestino já completa 70 anos, com a ampliação dos territórios originalmente destinados à construção do Estado de Israel pela resolução 181 da ONU. Ao longo desses anos, Israel ampliou largamente seus domínios, utilizando-se de institutos vedados pelo direito internacional, como a expansão dos assentamentos em áreas acordadas como palestinas, expulsando as famílias de suas terras e casas. Além disso, Israel ocupa ilegalmente territórios na Síria, Jordânia e Líbano. Essas ocupações, aliás, foram consideradas ilegais pelo Conselho de Segurança da ONU, o que não impediu Israel de seguir com sua expansão, tanto por meio de iniciativas de colonos, que organizam as incursões em áreas palestinas e os pogroms contra seus habitantes, quanto pela força militar.
A verdade é que Israel, ainda que colecione declarações contrárias à sua política de expansão ilegal, na prática conta com o apoio e a proteção de nações poderosas como a Alemanha, a Inglaterra, a França e a maior potência militar do mundo, os Estados Unidos da América. Pela ótica dos interesses de política externa dos EUA e de seus sócios europeus, a existência de Israel é fundamental para a defesa de seus interesses e negócios na região. Ao longo dessas sete décadas, os territórios palestinos tornaram-se meros enclaves sem autonomia em meio aos domínios de Israel, sob a tolerância das potências e com ajuda financeira ilimitada aos sucessivos governos israelenses. Cidadãos de segunda classe, os palestinos vivem em um regime ainda mais restritivo do que o derrotado apartheid da África do Sul, sujeitos a controles de entrada e saída dos territórios, proibidos de sair ou de retornar, em situação de insegurança alimentar, dependentes de ajuda humanitária e sujeitos a violências de todo tipo, inclusive de serem retirados de suas casas do dia para a noite, a fim de dar lugar a novos assentamentos. Nessa situação de violência colonial, o que resta aos palestinos é resistir. E resistem. Nos cárceres de Israel, centenas de mulheres, crianças e idosos são mantidos presos em condições insalubres, acusados de terrorismo ou de colaboração com o terror, em sua maioria porque ousaram enfrentar soldados fortemente armados com algumas pedras, ou de punho em riste.
O ato de resistência organizado pelo Hamas e outros grupos políticos palestinos, que vitimou cerca de 1.200 israelenses e fez duas centenas de reféns, desencadeou o maior ataque militar de Israel sobre a faixa de Gaza desde o início do projeto colonial em curso. Segundo o relatório de Francesca Albanese, relatora especial sobre a situação dos direitos humanos nos territórios palestinos, a situação a que Gaza está submetida configura-se por um conjunto de atos que têm a intenção de perpetração de um genocídio, conforme já denunciou a África do Sul à Corte Internacional de Direitos Humanos. Para Albanese, “o genocídio em Gaza é o estágio mais extremo de um processo de colonização de longa data de eliminação dos palestinos nativos”. Conforme mostra o relatório da funcionária da ONU, Israel nesses seis meses já “cometeu três atos de genocídio com a intenção necessária, causando sérios danos corporais ou mentais a membros do grupo, infligindo deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para provocar sua destruição física total ou parcial, e impondo medidas destinadas a impedir nascimentos.”
Enquanto escrevo esta coluna, contam-se os mortos nos bombardeios de ontem em Rafah. Já são 32,5 mil mortos e 75 mil feridos em Gaza. Dentre os mortos, mais de doze mil crianças. A fome e a desnutrição já começam a fazer suas vítimas, além das doenças e do frio. Os caminhões de ajuda humanitária sofrem bloqueios diários, seja por ação dos militares ou por grupos de civis israelenses, configurando o objetivo de impedir que os habitantes de Gaza recebam alimentos e remédios, o que é nada mais que a busca intencional de sua aniquilação pela fome, pelas doenças e pelos ferimentos causados pelas ações militares.
Mas a propaganda pró-Israel é incessante. Mesmo com uma resolução pelo Cessar Fogo aprovado (a duras penas) no Conselho de Segurança, os bombardeios não param e tampouco recua a campanha de criminalização das vozes que denunciam os crimes de Israel nos países do chamado “ocidente” nos jornais, nos canais de televisão, nas redes sociais. A perseguição às vozes dissonantes é implacável. Processos judiciais contra jornalistas (inclusive no Brasil), suspensão de contratos de artistas em Hollywood, suspensão de contratos com intelectuais e professores, como ocorreu com Nancy Fraser, que iria trabalhar por alguns meses na Alemanha; proibição de protestos na França, na Alemanha e nos Estados Unidos. No entanto, o horror continua estampado. É impossível esconder os corpos, as valas comuns, as crianças magérrimas, chorando de fome e dor nas improvisadas macas de uma região do mundo que já não tem mais hospitais e nem medicamentos. Todos foram destruídos pela fúria colonial de Israel. As declarações dos senhores da guerra contra o povo palestino assemelham-se, em cinismo e desumanidade, às expressões enfadadas dos lordes ingleses frente ao sofrimento e à insurreição do povo indiano, a quem tratavam com a violência extrema das baionetas até a independência da Índia, em 1949.
A propaganda colonial tem grande poder nos meios de comunicação, e também domina os núcleos dirigentes das grandes universidades e centros de investigação, sempre premidos pelo pavor de virem a sofrer cortes de financiamento. Mas as ameaças não podem esconder o horror: aos poucos a consciência crítica impõe-se e as vozes se levantam. Refiro-me aos universitários estadunidenses, e agora também alguns europeus, que insurgem-se em solidariedade aos mais de 800 presos (enquanto escrevo, o número aumenta) pela “democracia ilimitada” dos Estados Unidos, que proíbe as manifestações contrárias ao genocídio em Gaza. Os protestos estão sendo classificados, assim como toda e qualquer crítica aos atos do Estado de Israel, sob o rótulo já desgastado do “antissemitismo”. Em resposta, espalham-se os protestos por outras universidades dos EUA e da Europa, duramente reprimidos. Há prisões e espancamentos de manifestantes na Alemanha, enquanto novas universidades vão sendo ocupadas pelos estudantes, como a Sorbonne, na França.
Tal como em outros momentos críticos da história da humanidade, é a juventude que se dispõe a encarnar o espírito dos tempos. Foram os jovens estadunidenses que abraçaram massivamente o repúdio à guerra promovida pelos EUA no Vietnã, passo que faltava para que os exércitos imperialistas, já derrotados pela guerrilha, fossem trazidos de volta e a guerra encerrada. A juventude nem sempre está organizada, nem sempre tem consigo um programa radical e são essas variáveis que irão determinar o alcance dos seus atos. Mas é nela, sem dúvida, que ecoa mais rapidamente o sentimento da injustiça e da revolta. Sem as amarras que já imobilizam seus pais e muitos de seus professores, os estudantes atiram-se à ação. Enfrentam a repressão policial e tomam em suas mãos os campi das universidades, exigindo o fim dos projetos e dos financiamentos a Israel, uma semana depois do congresso dos EUA destinar U$26 bilhões de ajuda financeira para a continuidade da carnificina em Gaza.
O levante estudantil nos EUA começa a servir de exemplo e a alastrar-se pelo mundo. Já não é mais possível esconder os horrores do genocídio em curso. Por mais que invistam em campanhas e perseguições às vozes dissonantes, os governos e as corporações que apoiam a política de apartheid de Israel perdem terreno. A liberdade do povo palestino impõe-se ao mundo como condição irrenunciável para o fim da injustiça a que foi submetido por décadas. A continuidade do projeto colonial começa (embora muito tarde) a ser massivamente questionada, como um dia o foi o apartheid sul-africano. A questão palestina é o principal dilema político, ético e moral de nosso tempo. É preciso enfrentá-lo, e a juventude nos mostra que ainda é possível ter esperanças na humanidade.
(*) Rita Coitinho é socióloga e doutora em Geografia, autora do livro “Entre Duas Américas – EUA ou América Latina?”, especialista em assuntos da integração latino-americana.