“Quando é que ele vai embora?”, perguntou o presidente Xi Jinping a um de seus assessores, como mostra um vídeo divulgado nas redes sociais no final do mês passado. O presidente chinês estava se referindo a Antony Blinken, secretário de Estado dos Estados Unidos.
A visita de Blinken à China se deu poucos dias após aprovação pelo Congresso norte-americano do apoio bilionário a Taiwan (parte de um pacote de ajuda destinado também à Ucrânia e Israel) e da decisão de banir a plataforma chinesa Tik Tok dos Estados Unidos. Esses já seriam dois bons motivos para supor que a passagem de Blinken pela China exigiria uma dose a mais de cautela diplomática, mas o secretário de Estado de Joe Biden achou que era um bom momento para questionar como a China se relaciona com seus parceiros estratégicos.
Após o encontro com Xi e uma conversa de mais de cinco horas com Wang Yi (ministro dos Negócios Estrangeiros), Blinken, em coletiva de imprensa, afirmou que os Estados Unidos estão prontos para agir e aplicar sanções caso a China prossiga fornecendo itens de uso duplo para a Rússia e consequentemente continue a auxiliar Moscou no esforço de guerra contra a Ucrânia. A preocupação dos Estados Unidos faz sentido, mas o tom do aviso de Blinken parece mesmo delirante diante do atual estado das coisas.
As relações entre China e Rússia passaram por uma melhora progressiva desde o final dos anos 1990, até avançar para uma parceria estratégica e de alinhamento político nos organismos internacionais em meados dos anos 2000. A partir de 2014, com a imposição de sanções ocidentais contra a Rússia após a anexação da Crimeia, elas atingiram um tom de urgência para Moscou, que se viu na necessidade de reorientar o comércio de energia Rússia-União Europeia para os mercados asiáticos. Nesse contexto, em 2015, Rússia e China fecharam um acordo para a construção do gasoduto Power of Siberia, em funcionamento desde 2019.
Vinte dias antes de explodir a violência na Ucrânia, em fevereiro de 2022, Putin visitou a China e uma série de acordos bilaterais foram assinados, incluindo a venda de 100 milhões de toneladas de petróleo através da infraestrutura do Cazaquistão e a construção de outro gasoduto para levar 10 milhões de metros cúbicos de gás natural da Rússia para a China. Nessa mesma ocasião, foi estabelecida a “parceria estratégica sem limites” entre os dois países.
Um ano depois de iniciado o conflito, a China publicou um documento sobre sua posição a respeito da guerra. Não houve nenhum apoio claro às ações da Rússia, mas, igualmente, nenhuma condenação. Poucos dias depois, em março de 2023, o presidente Xi visitou a Rússia e novamente questões estratégicas foram colocadas em discussão, como a construção do gasoduto Power of Siberia 2. Putin, por sua vez, demonstrou algum interesse pelo plano de paz proposto pela China, mas, nesse ponto, nada avançou, e a guerra entre a Rússia e a Ucrânia não criou nenhuma fissura nas relações bilaterais entre Moscou e Pequim.
As preocupações mais recentes dos Estados Unidos e expressadas por Antony Blinken dizem respeito à ajuda que a China estaria dando, mesmo que de forma indireta, ao setor militar da Rússia. Conforme mencionei, ela faz sentido. De fato, a China tem fornecido à Rússia tecnologias de uso duplo e os chamados equipamentos militares não-letais, como peças de aeronaves, máquinas-ferramentas, itens usados na comunicação, colete à prova de balas e veículos aéreos leves não-tripulados. Além disso, desde 2022, a China se converteu no principal fornecedor de máquinas metalúrgicas, caminhões e microchips para a Rússia.
Mas se a preocupação faz sentido, o que parece não ser razoável é a forma que os Estados Unidos resolveram lidar com a questão, o que não é grande surpresa quando o assunto é a política externa de Joe Biden. Talvez o maior temor da Casa Branca seja que a China avance para uma cooperação militar mais profunda e direta com Moscou, com o fornecimento de armas letais para as forças russas ou que os dois países estabeleçam uma aliança militar formal e aberta.
A grande pergunta é se essa realidade pode ser evitada através de ultimatos, sanções ou uma política de pressão. E ela só pode ser respondida se entendermos a quem esse recado está endereçado. Não parece crível que os chineses irão recuar na articulação que alcança as esferas econômica, financeira, política e de segurança com a Rússia, a não ser que eles vislumbrassem algum ganho nisso. E o que os Estados Unidos podem oferecer? A manutenção da política ambígua em relação a Taiwan, território sobre o qual a China reivindica soberania? A implantação de mísseis de alcance intermediário na região da Ásia-Pacífico? Ou exercícios militares conjuntos com as Filipinas no Mar do Sul da China? A lista é longa.
Os Estados Unidos prosseguem acreditando que podem ditar os termos de cooperação entre outras duas potências que há anos encontraram no adversário em comum um elemento para aprofundar suas relações estratégicas. E esse é um erro grave.
A ameaça de Blinken poderia ter sido considerada uma postura assertiva e de defesa do interesse nacional dos Estados Unidos, mas está mais para um delírio de uma potência que não enxerga qualquer recuo e concessão para lidar com a sua crise de liderança em um sistema internacional cada vez mais tensionado. Ameaçar um país com sanções em uma visita diplomática e em seu próprio território já denota uma arrogância sem limites. Achar que ultimatos serão capazes de alterar a estratégia de um país de características como a China faz parte de um sonho distante. Pensar que no atual estado das coisas a parceria sino-russa pode ser desarticulada por meio de ameaças e que um afastamento entre os dois países pode ser provocado através de uma política de pressão evidencia o caminho errático que a política externa de Joe Biden tem insistido em trilhar.
À arrogância da dupla Biden-Blinken, a China respondeu como uma potência plenamente capaz de estabelecer a estratégia que melhor lhe convém e reafirmou que seu direito à cooperação econômica com a Rússia ou qualquer outro país não deve ser perturbado ou sofrer interferências.