A carta do Almirante Olsen, atual comandante da Marinha, à Câmara dos Deputados, recomendando a não inclusão de João Cândido no livro de heróis da Pátria, ampliou a repercussão do debate sobre a Revolta da Chibata, que completa 114 anos em novembro; uma “luta inglória”, que “através da nossa história, não nos esqueceremos jamais”. João Cândido merece constar no livro, pois é inegável sua contribuição para a história brasileira. Imortalizá-lo é uma das maneiras de garantir que ele seja apresentado às novas gerações, que crescem sem conhecer a beleza da interpretação que Elis Regina fez da música de João Bosco e Aldir Blanc: Mestre Sala dos Mares (1974).
Mas este é um texto sobre 2024, e o episódio oferece muitas lições para pensar a caserna nos dias de hoje. O próprio envio da carta, que retoma argumentos de um primeiro documento que circulou em 2008, é expressão do momento atual. Não existe mais o grande mudo. Militares falam, fazem ameaças, seduzem. E o fazem rotineiramente. As comunicações são o coração da guerra contemporânea, e as Forças Armadas planejam cuidadosamente as mensagens com que pretendem afetar a população. Poucos dias depois do aniversário do golpe de 1964, soa como chacota o trecho da carta em que o Almirante afirma desconhecer o emprego da violência, por parte de militares, contra a vida de civis brasileiros.
Entretanto, como ocorrem os sussurros dentro dos muros da caserna? A organização sindical é proibida, pois o acesso às armas tornariam rebeliões desses segmentos difíceis de manejar, a exemplo das greves nas polícias militares. As Forças Armadas lidam com contradições impondo o silêncio. Foi assim que o Almirante negro da canção se transformou no genérico navegante negro, e o bravo marinheiro, em um feiticeiro. A reivindicação do Almirante, entretanto, tem fundamento: o ex-presidente tornou-se conhecido na caserna por externar reivindicações salariais, enquanto o atual presidente Lula forjou-se no leito sindical.
Como as Forças Armadas lidam com as contradições impondo o silêncio, é discreto o movimento que hoje é percebido entre praças reivindicando que as melhorias concedidas aos oficiais na gestão do Trump tupiniquim sejam estendidas às baixas patentes. Como Lula deve reagir às reivindicações de vantagens corporativas da categoria? Ceder à reivindicação, além de pesar ainda mais a proporção que o pagamento da folha de pessoal tem sobre o orçamento do Ministério da Defesa, amplia as vantagens, essas sim indevidas, que os servidores da área de defesa têm quando comparados ao restante dos funcionários públicos não armados.
Por falar em atualidades, seguidas às revoltas que envolvem militares, sempre vem um pedido de anistia, como viu-se após a Revolta da Chibata, e como se vê após o dia 8 de janeiro de 2023. E esse caso é exemplar para evidenciar que, diferente do que o senso comum acredita, a regra não é a anistia quando se tratam de praças, ou de manifestações militares à esquerda. O poder discricionário é do Alto Comando. Ou seja, embora os marinheiros tenham sido anistiados logo após a derrota da revolta, a anistia foi ignorada, como exemplificou o samba enredo da União da Ilha em homenagem ao Almirante Negro (1985), “a mentira veio no fantasma da anistia, o mar nunca afogou as ondas que agitam a liberdade”. Em 1911, 1216 marinheiros foram expulsos da Armada. As lideranças da Revolta, incluindo João Cândido, foram presas, torturadas, e alguns deles assassinados nas prisões militares da Ilha das Cobras. O Almirante Negro sobreviveu quase como que de teimoso, antecipando a profecia de Conceição Evaristo, pois “eles combinaram de nos matar, mas a gente combinamos de não morrer”. A anistia e a impunidade tem cor, patente e recorte ideológico.
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(Foto: Marinha do Brasil / Flickr)
Tomando emprestada a expressão de Celso Castro, Almirantes não são marinheiros há mais tempo, uma vez que a entrada na carreira militar, no caso do Brasil, ocorre de maneira separada. Uma vez praça, eternamente praça; uma vez oficial, para sempre oficial. Mas o subordinado de hoje não é o mesmo de 100 anos atrás. Muitos deles têm alta escolaridade e são disputados pelo mercado de trabalho civil, notadamente nas funções que a Marinha e a Aeronáutica demandam. Com isso, o próprio exercício da hierarquia mudou. Obviamente as punições continuam a frequentar os imaginários militares, ainda que os castigos corporais tenham sido substituídos pelo fim de semana trabalhando sem poder visitar a família. Entretanto, a coerção não é suficiente para a manutenção da hierarquia no dia-a-dia, ainda mais em alto mar, por meses a fio. A coesão faz-se necessária, e a batalha pelas ideias daqueles que já são militares é muito mais intensa.
Aliás, diga-se de passagem, a Revolta da Chibata foi importantíssima para a Marinha, pois não apenas garantiu o fim das punições físicas, como também empurrou a Armada brasileira para o século XX, estimulando mudanças no treinamento dos militares, no seu recrutamento, na gestão dos navios. Sem a supressão dos castigos corporais, não haveria a possibilidade de adotar o regime de recrutamento universal, pertinente naquele momento, atualmente um atraso. Mas é um equívoco esperar por novos João Cândidos no século XXI, a surgir “nas águas da Guanabara”. Na caserna, o futuro e o passado se mesclam, e o atraso da tortura pode conviver sem maiores problemas com o futuro da tecnologia de propulsão nuclear. O controle dos instrumentos de violência (humanos e materiais) é responsabilidade da soberania popular, e não é possível terceirizá-lo a outrem.
Se a importância das baixas patentes no manejo bélico de equipamentos tecnologicamente avançados já era inegável antes, hoje é ainda mais. Os marinheiros insurgentes conseguiram manejar o encouraçado Minas Gerais, navio que reunia parte da mais avançada tecnologia disponível no Brasil da época. Um navio nos dias atuais, ou um submarino, é como uma grande indústria de tecnologia de ponta. O produto final é resultado da soma de vários setores produtivos, todos eles sendo modernizados continuamente. Por um lado, pode ocorrer a alienação do trabalho, em que cada um conheça apenas o processo produtivo da parte em que se engaja diretamente. Por outro, deixa evidente que o resultado final não é apenas um somatório das partes isoladas, como aquelas que garantem a navegabilidade, o abastecimento, ou os armamentos; mas sim a combinação cooperativa delas. João Cândido explorou habilmente o poder dos praças, responsáveis pelo manejo da violência, em contraposição aos oficiais, cuja atribuição é o planejamento estratégico do emprego da violência. Os almirantes de hoje sabem que dependem das baixas patentes, e o maior problema em que um deles pode se ver envolvido é exatamente aquele que está no cerne da Revolta da Chibata: a quebra de hierarquia.
Essa discussão nos leva a outro problema, o da liderança. João Cândido não manejou sozinho o encouraçado, mas foi capaz de inspirar seus colegas, que o proclamaram Almirante. De fato, ninguém vai se lembrar de quem foi Olsen em poucos anos, e mesmo Tamandaré não se popularizou, mas João Cândido está inscrito no livro de heróis, ainda que a Câmara assim não o denomine, em que pese o enorme esforço da Marinha para fazê-lo sumir da história. Entretanto, até pouco tempo atrás, valorizávamos os comandantes militares desconhecidos, o comando exercido de forma impessoal, dado que é derivado do cargo, e não daquele homem (sim, sempre eles) que naquele momento o ocupava. Esse tipo de liderança, diga-se de passagem bem pouco latina, levou à atual crise de liderança nas Forças Armadas que, felizmente, constatou-se no dia 8 de janeiro de 2023. É pertinente seguir pensando um comandante militar como um grande burocrata? A liderança de João Cândido nos tempos passados, e de Hugo Chávez nos tempos recentes, os transformaram em lendas vidas. O desafio atual passa menos por comandar, e mais por coordenar esforços coletivos e inspirar a tropa rumo a um caminho pelo qual seguir.
Isso não significa falta de cuidado com o arcabouço normativo, sustentado por farta criatividade jurídica que, sejamos honestos, não toca apenas o estamento militar atual. Embora os castigos físicos tenham sido abolidos com a Constituição republicana, e a abolição da escravidão, comemorada no dia da publicação deste texto, já completasse 22 anos, a Marinha deu um jeitinho para manter o açoite nos seus regramentos disciplinares, com as chibatas limitadas a 25. “Rubras cascatas jorravam das costas dos santos entre cantos e chibatas, inundando o coração do pessoal do porão”. Não faltarão bacharéis fardados, ou fardados bacharéis, para oferecer novas interpretações para o que se fizer necessário na contemporaneidade.
Chegamos, por fim, ao maior defeito de João Cândido, um problema dentro e fora do ambiente militar, um defeito de cor, como batizado pela mineira Ana Maria Gonçalves. As pesquisas sobre a questão racial nas Forças Armadas brasileiras são tão poucas quanto a presença de oficiais negros, marca da branquitude acadêmica, e miopia política. As Forças não têm a questão racial como critério para a seleção ou progressão na carreira, e mesmo os dados disponíveis a respeito são terríveis, nem mesmo respeitando a classificação do IBGE. Segundo reportagem de Leonardo Cavalcati, os militares do Exército podem se considerar brancos, morenos, pardos, pardos claros, pardos escuros e pretos. Seria cômica, se não fosse trágica, a aparição de alguém “marrom bombom”. Na Marinha, pretos, pardos e morenos são a metade da tropa entre os praças. Entre oficiais, os três grupos, juntos, conformam a metade do número de brancos, em todas as patentes. Não foram encontrados dados sobre o número de Almirantes.
Justiça seja feita, as condições para o negro ascender dentro da caserna são melhores do que fora dela. Uma vez inseridos nas academias de oficiais, têm todas as suas condições de subsistência satisfeitas, e ainda recebem um soldo com o qual podem ajudar a família desde o primeiro dia de estudos. Não é a realidade do restante da juventude negra, em trabalhos precarizados, como o de aplicativos, sem sequer sonhar com a possibilidade de assistência social de curto prazo, quanto mais com a aposentadoria. Por outro lado, as Forças têm padrões discriminatórios mais discretos para purificar a oficialidade de grupos étnicos, religiosos ou sociais considerados indesejáveis, como ensina Fernando Rodrigues.
Pode-se dizer que as Forças Armadas são realmente a imagem do Brasil sob a dimensão étnico racial. Uma pequena cúpula branca, e uma imensa base negra e parda, portadora do defeito de cor que marcou João Cândido. Que o espírito de Zumbis, Dandaras, Joãos e tantos anônimos marcados pela chibata cotidiana e contemporânea nos inspirem no porvir. Eles merecem lugar no samba, no livro de heróis da pátria, na literatura e também, porque não, figurar entre os patronos das Forças Armadas nacionais brasileiras.
(*) Ana Penido é pós-doutorada em ciência politica pela Unicamp, pesquisadora do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (Gedes – Unicamp) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.